A mesma notícia dada por diferentes jornais dieferenças enfoques

Introdução

1Cronologicamente, coincide o nosso estudo com o período (para alguns a “etapa” decisiva, ao ponto de lhe chamarem a “idade de ouro da imprensa”) particularmente acarinhado por uma história natural do jornalismo, que aqui encontra a modernidade (leia-se autonomia face ao poder político e profissionalização do jornalista) “pela mão” da publicidade (libertadora), fruto da industrialização oitocentista.

2Assim, quando nos aproximamos dos estudos jornalísticos portugueses procurando compreender os jornais diários na viragem do século XIX, temos de imediato uma grelha interpretativa acessível e dicotómica: em Portugal existiria uma imprensa de opinião, partidária, apaixonada, e uma outra informativa e apartidária (Baptista, 2012; Mesquita, 2014; Tengarrinha, 1971). A esta última caberia a fórmula do sucesso.

3Esta abordagem do jornalismo, se tem a vantagem de nos chamar a atenção para a existência de várias práticas jornalísticas, remete, porém, para um âmbito cronológico longo e vago (“século XIX”, “último quartel do século XIX”), dizendo-nos pouco sobre o objecto que enfatiza: o jornalismo informativo. Tende ainda a reproduzir as histórias institucionais e as memórias dos profissionais do jornalismo, secundarizando a análise dos jornais. A verdade é que sabemos pouco sobre o jornalismo político praticado pelos jornais informativos O Século e Diário de Notícias.

4O presente estudo aborda o tratamento e a organização da notícia política n’O Século e no Diário de Notícias, com base numa análise comparativa destes jornais com sete jornais políticos diários, de Lisboa, nas suas edições de dia 1 de Abril de 1906 (três jornais republicanos – O Mundo, Vanguarda e A Lucta – e quatro monárquicos – Popular, A Opinião, Novidades e Diário Illustrado). Procuraremos aqui responder às seguintes questões: que lógica informativa estava subjacente ao jornalismo político dos jornais informativos? Qual o lugar ocupado pela informação nos jornais de opinião?

5Convém referir que a presente investigação integra a nossa tese de doutoramento, subordinada ao tema “O jornalismo político republicano radical. O Mundo (1900-1907)”, defendida em 2014, onde, entre outros aspectos, procurámos responder à questão: que práticas jornalísticas partilha o jornal O Mundo com a restante imprensa diária?

6A maior dificuldade para quem estuda os jornais da época contemporânea é o carácter gigantesco do acervo documental de que se dispõe, que resulta não só na total ausência de estudos comparativos como também na preferência por enfoques temáticos num único jornal.

7Mas o carácter serial dos periódicos e o seu ritmo diário, ao remeterem para rotinas, sugeriram-nos o presente trabalho: procurar surpreender convenções noticiosas na análise de um único dia. Aceitamos aqui a proposta de Michael Schudson ”de que o poder dos media está não apenas (e nem sequer primariamente) no seu poder de declarar as coisas como sendo verdadeiras mas no poder de fornecer as formas nas quais as declarações aparecem. As notícias num jornal ou na televisão têm uma relação com o «mundo real», não só no conteúdo mas na forma; isto é, no modo como o mundo é incorporado em convenções narrativas inquestionáveis e despercebidas” (Schudson, 1999, p. 279).

8A redução da escala de observação coloca a presente abordagem na proximidade da micro-história, com ela partilhando o método de descrição exaustiva de um pequeno núcleo de fontes, que visa explorar uma temática específica (temporal e espacialmente) pela reconstituição de contextos do quotidiano.

9Colocou-se de imediato um problema: a escolha do dia. Interessava-nos, por um lado, que este fosse temporalmente próximo do âmbito cronológico do termo do nosso estudo (já atrás referido), Janeiro de 1908 (véspera do regicídio), e, por outro, que não fosse marcado por nenhum acontecimento excepcional.

  • 1 O carácter aleatório aqui mencionado não remete para os critérios da análise estatística, por sorte (...)

10A escolha do ano acabou por resultar da análise do contexto político do período (Catroga, 2000; Ramos, 1995; Valente, 1999). É sabido que, em Maio de 1906, João Franco, chefe do Partido Regenerador Liberal, foi chamado a formar governo, pondo formalmente termo ao rotativismo político (relançado em 1900), e iniciando-se, então, um dos períodos de maior crispação política. Nesse sentido, a regularidade jornalística que pretendíamos encontrar pareceu-nos assegurada se colocássemos o nosso caso de estudo imediatamente antes do franquismo. Escolhido o ano de 1906, colocou-se a questão da selecção do dia e do mês. O dia 1 de Abril tinha uma carga simbólica (“dia das mentiras”) que o singularizava, reforçando o sentido aleatório pretendido1.

11A escolha deste dia situava os jornais numa conjuntura política de relativa tranquilidade: desde Março que Hintze Ribeiro chefiava o governo regenerador e ainda não tinham ocorrido os incidentes políticos que levariam à sua substituição por João Franco.

12Através desta amostra procuramos lançar algumas interrogações sobre a forma como cobriam os jornais diários a vida política portuguesa, com base na sua organização e na sua atitude face ao político. O conceito de “político” foi aqui tomado no seu âmbito mais estrito, remetendo-o para as seguintes temáticas: institucional (administrativa e de governação); actividade de organizações político-ideológicas (partidos e outras formas de associação com intervenção política declarada); e conflito social.

1.O jornalismo de registo

13O Século, 1 de Abril de 1906, sob o título À última hora, subtítulo A guerra?:

“Algeciras, 31.n. – Malogrou-se a conferência. Vai portanto, estalar a guerra, sendo coagidas a entrar na luta, desde já três potenciais a Portuguesa, a Brasileira e… Ultramarinas (?). Estão em pé de guerra três exércitos, prontos para o extermínio de milhares de viventes. À frente do exército português está o invencível general Mock (…). Querem saber mais? Vão ou mandem à farmácia Portuguesa, na rua do Crucifixo” (página 9).

14Na década de 60 do século XX, Marshall McLuhan lembrou aos que estudavam os media: “Anúncios são notícias” (2006, p. 237). Boa ajuda para início da reflexão sobre o jornalismo praticado pel’O Século e pelo Diário de Notícias no dia 1 de Abril de 1906, obrigando-nos a pensar como o olhar errático do leitor de um jornal pode demolir toda e qualquer pretensão jornalística de eleger algumas das suas tarefas, sobrepondo-as ao produto final que oferece.

15A questão em torno de se definir o que é uma notícia ainda se complica mais quando hoje “a pergunta «o que são as notícias?» é considerada pelos próprios jornalistas como notoriamente metafísica e difícil de responder, excepto em termos da sua intuição, «faro» e juízos inatos” (McQuail, 2003, p. 341). A problemática tende a ser deslocada, segundo Mário Mesquita (2004, p. 13), para “noções operativas forjadas no meio profissional”, que opõem “a notícia à história de interesse humano” (nos Estados Unidos) ou a informação séria aos faits divers (na Europa). Adianta-nos pouco.

  • 2 Com particular incidência nas páginas 4, 7 e 9 do Diário de Notícias e na 7 d’O Século.

16Sabemos que o Diário de Notícias e O Séculoconstituíam, em termos quantitativos, um produto claramente distinto, com doze e dez páginas, respectivamente, em vez das quatro dos outros jornais. O espaço ocupado pela publicidade no Diário de Notícias e n’O Século era também três ou quatro vezes superior (quatro páginas integrais no Diário de Notícias e três n’O Século, e ainda presente, de forma avulsa, em todas as outras páginas2). Mas, ainda que fosse grande o espaço ocupado pelos anunciantes, interessa-nos aqui o conteúdo informativo não declaradamente pago.

17A 1 de Abril de 1906, lia-se noDiário de Notícias: “Fizeram exame na capitania para arrais de embarcações de navegação do Tejo e ficaram aprovados os marítimos Luz Lopes, Francisco Pedro e Ventura Rodrigues”. E n’O Século, sem título: “São hoje publicadas na folha oficial as instruções regulamentares dos serviços de contabilidade e tesouraria do Mercado Central de produtos agrícolas”. Estas duas curtas informações eram notícias de primeira página. A lógica jornalística de 1906 remete-as para um lugar de destaque e dispensa-as de qualquer contexto valorativo.

18O que as unia? Comungavam ambas de duas qualidades jornalísticas valorizadas pelos jornalistas que editavam os respectivos jornais: eram informações actuais e exclusivas. Mais: reproduziam, com pouco ou nenhum tratamento jornalístico, a informação fornecida pelas fontes. Puro registo de factos.

19Nesse dia, mais de dois terços das informações vertidas nos jornais informativos obedeciam a este padrão; informar era um registo de ocorrências.

20Para compreendermos a dimensão que assumia, neste ano de 1906, o jornalismo de registo, convém realçar o lugar ocupado por um subgénero noticioso, hoje desaparecido, a que chamaremos “notícias colectivas” – isto é, informações não individualizadas, agregadas sob um mesmo título, organizadas em forma de lista e sem conexão aparente entre si. Praticamente metade das informações registadas nos jornais informativos obedecia a este enquadramento formal: um título listava informações de relevo e temática variável.

  • 3 As percentagens apresentadas têm por base a contagem do total de linhas impressas no jornal, exclui (...)

21Este recurso jornalístico era amplamente utilizado, peloDiário de Notícias e pel’O Século, em todas as páginas com conteúdos informativos, representando, respectivamente, 53,4% e 48,8%3 do total das notícias presentes nestes jornais.

22O jornalismo noticioso de registo podia assumir formas diversas: desde a total miscelânea à temática genérica. No primeiro caso, ganham relevo as notícias dos correspondentes (no Diário de Notícias representavam 27,4%; n’O Século, 11,4%). Estas, apesar de ocuparem um espaço razoável, eram sempre incluídas nas páginas interiores. A título de exemplo, sob o título O Século nas Províncias (O Século) concentravam-se 42 informações diversas, organizadas geograficamente, que davam conta de intrigas políticas locais, intercaladas com casamentos, incêndios, suicídios, viajantes, doentes, recepções a novos governadores civis e administradores de concelho, inaugurações de novos estabelecimentos, crianças apedrejadas, trânsito de soldados, estado das colheitas, meteorologia, etc..

23O recurso a títulos genéricos não se ficava pelas correspondências. Veja-se o apelativo Últimas Notícias (O Século), que continha, entre outros, desde notas sobre o último conselho de ministros, ou sobre a possível abdicação do rei sérvio, até informações sobre a expulsão de dois polícias no Porto, por terem espancado uma meretriz, ou ainda sobre a quebra de cabos de tracção eléctrica no largo do Rato, em Lisboa. Sob o título Notícias Diversas (Diário de Notícias), lia-se:

“Foram nomeados regedores efectivos das freguesias (…); Foram concedidos passaportes reais à chalupa «Generosa» da praça de Lisboa (…); Terminaram ontem em Santa Apolónia os exames para escriturários da Companhia Real (…)”.

24Nas notícias de carácter colectivo encontramos por vezes uma vaga unidade temática (Obras Públicas, Instrução Pública, Diversões,etc.). A lógica de agregação obedecia aqui a algum esforço organizativo.

25Esta atitude face ao conteúdo noticiável, presente nas notícias colectivas, tinha como contrapartida a tendência para formalmente nivelar assuntos de interesse desigual. Revelava ainda a postura do jornalista informativo, mais interessado na recolha da informação do que no seu tratamento. Esta constatação reforça-se quando nos apercebemos de como, nestas notícias de carácter colectivo, o peso dos correspondentes era acompanhado por um espaço igualmente preponderante concedido às informações obtidas junto do aparelho do Estado. No Diário de Notícias, 19,6% do espaço do seu noticiário recaía no registo de actos administrativos, contra 15,8% n’O Século. No entanto, não estão aqui contabilizadas todas as notícias sobre o Estado contidas no jornal, como é o caso de algumas das pequenas informações integradas nas notícias colectivas, que seguiam o formato miscelânea. O valor apresentado não peca portanto por excesso.

26Nesse dia, os jornais informativos registavam com minúcia actos administrativos e rotinas burocráticas. Boa parte das notícias antecipava a letra do Diário de Governo, enquanto outras seguiam os trâmites legais dos processos colectivos e individuais que, por uma razão ou por outra, viajavam para nova instância administrativa, à espera de decisão superior. A título de exemplo, com o sugestivo título Ecos Militares lia-se, no Diário de Notícias, na sua primeira página:

Ofereceu-se para servir no ultramar o músico de 1.ª classe de infanteria 21, Arthur Pereira. Teve passagem a infanteria 7 Joaquim Pedro de Magalhães Gama, 1.º sargento de infanteria 1. Foi nomeado definitivamente revisor de 2.ª classe dos caminhos-de-ferro do Sul e Sueste, o 2.º Sargento de infanteria 17, Francisco Peres de Sousa. – Pediam para voltarem ao serviço activo de infanteria 21 (…); partiu para a freguesia de Cantelães de Cepeda em serviço o capitão (…); foram mandados recolher (…); foram transferidos (…).

27O Século remetia a mesma notícia para a quinta página. Nos dois jornais o texto era integralmente o mesmo.

28Corria eficiente, a máquina do Estado nas páginas destes jornais. Ministérios, secretarias, direcções gerais, comissões, conselhos, etc., despachavam serviço. Parte do trabalho dos jornais informativos passava por recolher e transcrever estas informações, com pouco ou nenhum lugar para tratamento de edição, fosse na selecção ou na hierarquização dos factos noticiados ou na contextualização dos actos administrativos editados. Confirme-se, no Diário de Notícias, ainda na primeira página, sob o título Obras Publicas:

Foram solicitadas reparações na Biblioteca Nacional – Deu entrada na repartição respectiva o projecto da reparação do troço da estrada compreendida entre a ponte de Noemi e o Sabugal, Guarda. – Deve ser submetida à aprovação do Sr. Ministro das obras públicas o orçamento para a reparação de parte da muralha da ribeira de Coima destruída pelo temporal da semana finda;

29ou, n’O Século,

Reuniu ontem o conselho de melhoramentos sanitários sob a presidência do Sr. General Montenegro. Tratou de diversos assuntos de expediente, aprovou 17 pareceres relativos a projectos de construção urbanas, dos quais um foi rejeitado, e distribuiu 5 processos para consulta.

30O recurso às fontes administrativas tinha a enorme vantagem de permitir aos jornais preencher com facilidade as suas páginas, passando “a pente fino” as várias áreas de intervenção do Estado. Informações variadas sobre inspecções portuárias, mercadorias que tinham dado entrada nas alfândegas, promoções, nomeações, degredados, deportados, julgamentos, testamentos, exames, patentes, estatutos, etc., davam a ler, pelo ponto de vista fixo do Estado, a variedade descontínua e incongruente da vida diária em sociedade. O aparelho estatal surgia “noticiado” de forma pulverizada em todas as páginas. Era um Estado omnipresente, dominante e complexo.

31As informações recolhidas junto da máquina do Estado eram tanto mais importantes quanto utilizavam uma linguagem técnico-burocrática que remetia para o rigor e a racionalidade, características ausentes e verdadeiramente contrastantes com o “reflexo” caótico da sociedade, presente na concepção do próprio jornal. O Estado era um nicho de coerência.

32Mas não eram só as notícias colectivas que contribuíam para a imersão do leitor numa complexa e inextrincável “realidade” veiculada pelo facto noticiado. Lembremos que a leitura rápida surgia como uma impossibilidade, dada a ausência de títulos que orientassem a leitura, e não havendo por isso sugestão de relevância do facto noticiado. Mesmo na primeira página estes jornais não utilizavam “gordas”.

33Olhemos o Quadro I. A paginação servia-se de pequenos e numerosos títulos a uma coluna, dispersos pelas páginas. A primeira página do Diário de Notícias distinguia-se pelo número de pequenas “entradas”. Era clara a preferência pelo título neutro, atemporal, que apontava para temáticas gerais.

34Tendiam os pequenos títulos a remeter para a nomeação de instituições, personalidades, actividades económicas, etc. Outros, nem isso; apontavam antes para sínteses noticiosas – chamemos-lhes também colectivas, por não individualizarem mas antes agregarem informações diversas (veja-se Notícias Diversas, no Diário de Notícias, ou Informações, n’O Século). A leitura integral dos jornais confirmaria este relativo desprendimento face ao título. Ambos tinham, ainda, notícias sem título (mesmo na primeira página – veja-se a entrada 33 no Diário de Notícias e a 11 n’O Século) ou com o mesmo título. Alguns repetiam-se ao longo do jornal. N’O Século, por exemplo, Informações nas páginas 1 e 2 e O Século nas Províncias nas páginas 6, 7 e 9; e, no Diário de Notícias,Movimento Marítimonas páginas 2 e 3 eFora de Lisboa nas páginas 2, 4 e 9. Mais: os dois jornais repetiam entre si títulos (Sport, Obras Públicas, O Crime da Atouguia da Baleia, Questão Corticeira, etc.). Por último, alguns títulos eram ardilosos: repare-se, sob o título Teatros, nas referências a feiras.

35Os títulos funcionavam de forma distinta da actual. Raramente introduziam os factos noticiados, eram tendencialmente neutros e não hierarquizavam as notícias. Se pretendêssemos descortinar quais as mais relevantes nesse dia, teríamos de nos socorrer da orientação da paginação, seguindo o trabalho do tipógrafo, de coluna em coluna, de cima para baixo e da esquerda para a direita.

36Este procedimento ganha sentido quando nos apercebemos de que os dois jornais tinham, no início da sua primeira coluna da esquerda, a peça jornalística mais desenvolvida (com maior número de linhas impressas), o editorial. Recorrendo aqui aos estudos jornalísticos, sabemos que o jornalismo político convencionara, há mais de meio século, colocar, neste lugar de destaque, a rubrica mais importante do jornal, o artigo de opinião, o seu “fundo” ou o editorial. Os historiadores têm salientado que a singularidade do jornalismo informativo do Diário de Notícias passava pela exclusão desta peça jornalística, secundando aqui a “hagiografia” do próprio jornal, que, logo no seu primeiro número, apresentara esta novidade como garante de uma maior imparcialidade informativa. Contudo, no dia 1 de Abril de 1906, embora com conteúdos distintos, como veremos, os jornais informativos seguiam o velho padrão do jornalismo político, ocupando de forma mais desenvolvida esse espaço.

37Aparentemente, a vaga hierarquização das notícias parece seguir a lógica da paginação. Talvez se possa concluir que o jornalismo de registo, sem deixar de recorrer a convenções invisíveis de valorização informativa, tendia a desvalorizar o título, fugindo deste exercício, por excelência interpretativo e comprometedor. Se as notícias colectivas, de que atrás falámos, já ajudavam a fazer diluir assuntos de interesse público, num caldo indistinto e disperso de insignificantes ocorrências de interesse limitado, os títulos vagos reforçavam o carácter incoerente da realidade. Porém, a dispersão era enfatizada por outros factores.

38Algumas temáticas informativas, aparentemente mais coerentes, e que seguiam a lógica organizativa da listagem (isto é, que convocavam saberes e critérios de rigor e exaustividade associados ao acto de listar), podiam ser retomadas, de forma aleatória, noutras páginas, integradas, ou não, noutras notícias.

39O leitor do Diário de Notícias, por exemplo, que tivesse particular interesse em informar-se sobre assuntos alfandegários encontraria, logo na primeira página, noticiário útil, sob o título Administração Geral de Alfândegas. Ficaria aí informado sobre a nova chefia deste organismo:

“O Sr. Manuel dos Santos foi nomeado subchefe da 1.ª repartição da administração geral das alfândegas. O chefe desta repartição é o Sr. Conselheiro Calvet de Magalhães, que está exercendo interinamente, o cargo de administrador geral das alfândegas. Consta-nos que o Sr. Conselheiro Frade d'Almeida subchefe da 2.ª repartição vai ser nomeado chefe da mesma repartição. Aquele lugar, como ontem dissemos vai ser suprimido”.

40E poderia “rever” a mesma notícia na página 3. Ainda na primeira página, podia ler, em Notícias Diversas, informações sobre produtos despachados pela alfândega de Lisboa para o arsenal da marinha, o exército, obras públicas e o hospital de São José. Na página 2, consultaria Receitas Alfandegárias, com quadros com montantes relativos ao mês de Março, em Lisboa. Mas, sob o título Fora de Lisboa, numa notícia colectiva, teria acesso aos montantes relativos às receitas da alfândega do Porto. Já na terceira página, numa notícia intitulada Elevador da Alfândega, dava o jornal conta da inauguração de um elevador nos armazéns da administração geral das alfândegas, repetindo-se a notícia na quarta página, onde se encontrava uma outra, sob o título Rendimentos Alfândegas, dia 31, que tornava a apresentar as receitas de Lisboa e Porto, agora em conjunto.

41Suponhamos agora que o leitor se interessava por assuntos religiosos. No Diário de Notícias, encontraria informações individualizadas na terceira página, em Ordens Sacras, e ficaria aí a saber das 31 ordenações realizadas pelo Cardeal Patriarca. Na mesma página, poderia ler Notícias Eclesiásticas, dando conta da autorização régia à recepção de uma doação pelo bispo da Guarda e da colocação de padres em diversas freguesias. Na página seguinte, sob o título Procissões dos Passos, encontraria a programação religiosa de Carnide, Azambuja, Palmela, Vila Nova de Ourém, Povoa do Varzim e Braga. Mas, se lesse o jornal com atenção, teria mais informação: na segunda página, sob o título Fora de Lisboa, veria referida a procissão em Dois Portos, e, já na última página, em Aldeagalega. Se se interessasse por cerimónias religiosas teria de se esforçar, mas encontraria referências a procissões e missas noutros locais. Sob o título Carta de Palmela, na terceira página, descreviam-se os preparativos para as “festas” da Semana Santa, e, na mesma página, sob o sugestivo título Festas e Diversões, listavam-se as missas do dia, logo seguidas dos horários de museus e do jardim zoológico, dos programas de música nos passeios públicos e de informações sobre recitais musicais, bailes, saraus, homenagens, inaugurações em associações recreativas, etc.. Na página seguinte, sob o título Fora de Lisboa, o leitor encontraria a descrição de uma missa cantada em Leiria; e, na mesma página, em Crónica do dia, novamente asmissas do dia.

  • 4 Confirme-se n’O Século: na página 2, dois artigos (uma crítica teatral e conselhos de saúde); na 3, (...)

42Os assuntos administrativos e as temáticas de interesse humano estão presentes em todas as páginas noticiosas (excepto nas dedicadas exclusivamente à publicidade). Quando procuramos os artigos de teor não noticioso, de entretenimento cultural e de opinião, sendo estes normalmente os mais extensos e permitindo ao leitor descansar da leitura do registo informativo, apercebemo-nos de que estes surgem, também, dispersos por quase todas as páginas4.

43Nos dois jornais, o tratamento jornalístico da actividade política do governo seguia o formato de registo, através da listagem de conferências (entre representantes institucionais e personalidades políticas) e reuniões entre ministros, isentas de qualquer enquadramento explicativo.

44Pelos gabinetes dos ministros trabalhava-se: “o Sr. Ministro dos estrangeiros recebeu ontem a vista dos Srs. marquês do Funchal conselheiro Vilaça e marquês do Soveral tendo com os dois últimos longas conferências”; “o Sr. Ministro da guerra conferenciou ontem no seu gabinete como o seu colega da fazenda”. Os assuntos políticos eram, por vocação, enigmáticos e inescrutáveis, inacessíveis ao próprio jornalista, inevitavelmente distanciados do leitor e sugestivamente valorizados pela redundante expressão “houve larga conferência”.

45Vejamos o Quadro II, “Notícias sobre o governo do Reino no dia 1 de Abril de 1906”. Nele, não inserimos informações sobre o expediente político-administrativo, que recaem em decisões já tomadas pelos gabinetes ministeriais; incluímos apenas os títulos onde é possível encontrar de forma explícita referências à actividade ministerial. Optámos, ainda, por retirar as informações contidas em notícias colectivas e incluir comentários dos jornalistas (dados também referenciados nos Quadro III e IV).

46Os gabinetes ministeriais surgiam intransponíveis. Poucas eram as palavras sobre o que lá se tratava. O normal e regular funcionamento das instituições políticas era assegurado por um aparelho de informações sintéticas, precisas e descontextualizadas. Estão presentes, por exemplo, a referência a cordiais saudações de representantes políticos locais ao novo governo (“uma comissão de influentes políticos do concelho de Vale de Passos foi ontem apresentar os seus cumprimentos ao ministro da marinha”) ou a recepção ministerial de pedidos, reclamações ou rectificações legislativas, apresentados por representações institucionais, de classes profissionais ou outras – veja-se, por exemplo, a referência a uma “comissão de lentes do Instituto de Agronomia e Veterinária” que “procurou ontem ministro da marinha, [vindo] solicitar, modificações no programa de concursos para provimento cadeiras ensino colonial, recentemente aprovada” (Diário de Notícias). Que modificações? Porquê? Eram questões que o jornal não colocava.

47No entanto, note-se que por vezes o jornalista comentava as notícias, e, neste caso, dando voz ao governante acrescentava: “o Sr. Ministro vai estudar detalhadamente o assunto, a fim de poder tomar resolução”. O tom reverencial era agora próximo e confiante. O jornal surgia então como “voz” oficiosa do governo.

48Este posicionamento de fundo pró-governamental era dissimulado, desde logo pelo recurso a brevíssimos e dispersos comentários. Mas também pela não-adopção de títulos comprometedores.

2. A inserção do comentário

49Esta inclusão de um enquadramento mínimo do facto político, juntamente com todo o aparelho formal que temos vindo a tratar (notícias colectivas, ausência de títulos, dispersão das temáticas), permitia silenciar o debate político, ao disponibilizar limitadas ferramentas interpretativas ao leitor.

50Porém, importa realçar que à construção de uma realidade política inacessível e insondável presente nestes jornais se contrapunha uma outra, pela “mão” dos restantes jornais de opinião político-partidária. Aqui, a actividade ministerial era dada a “ler” por um enquadramento explicativo (interpretativo), e, por vezes, interpelativo.

51O chefe do governo não se limitava, afinal, a administrar o país e a receber amigos e colegas no segredo dos gabinetes. Aqui, o governo toma medidas não consensuais, susceptíveis de serem debatidas. Veja-se como o Vanguarda (republicano) e o Popular (regenerador) surgiam em sintonia quanto à mesma problemática governativa actual, por sinal ausente dos dois jornais informativos: o cancelamento, por parte do governo de Hintze Ribeiro, dos preparativos para mais uma campanha colonial, anunciada pelo seu antecessor, Luciano de Castro. Dizia-nos o jornal republicano, em editorial: “[V]erdadeiramente ignóbil esta política monárquica que por aí se desenrola”; a expedição estaria preparada para ir ao encontro do desejo de “revanche” [sic] “que dominou todos os portugueses desde o desastre colonial de 1905”, “para arrancar do pavilhão nacional um punhado de lama que a negraria de África lhe tinha arremessado”. E concluía: era “ignóbil e cínico este procedimento dos regeneradores”. Já o Popular, próximo do governo regenerador, dizia-nos sobre o mesmo tema que, apesar das “exclamações sonorosas da imprensa progressista”, “foi o mais sensato” seguir a “prudência” e o “bom senso”.

52Mas, a 1 de Abril de 1906, o assunto que estava na ordem do dia era a preparação, pelo governo regenerador, do novo acto eleitoral, agendado para dia 15. Procedia então o chefe do governo, Hintze Ribeiro, à recomposição da sua influência partidária no país, que passava pela nomeação de governadores civis, administradores de concelho e regedores.

53Num jornalismo “informativo” dependente das informações obtidas junto do aparelho de Estado, não é de estranhar a ênfase dada ao carácter puramente administrativo destes actos governativos. No Quadro III é possível compreender como O Século e o Diário de Notícias registavam, com a precisão dos documentos oficiais emanados do ministério do reino, as listas dos nomeados:

“Pelo ministério do reino, foram pedidas as seguintes autorizações para desempenho do cargo de administradores do concelho: Ao ministério da fazenda o Sr. Antonio Joaquim Dias Monteiro, escrivão da fazenda em Montalegre, comissionado em Lisboa ao serviço do cadastro predial, para administrador do concelho de Ponte de Sor; o Sr. Antonio Pedro Xavier Teixeira, aspirante da Alfandega de Lisboa, fazendo serviço em Faro para administrador do concelho de Alcoutim: justiça, Srs. bacharéis Luis Loureiro Melo Borges de Castro e José de Albuquerque Pimentel e Vasconcelos, e José António de Almeida, conservadores do registo predial das comarcas de Celorico da Beira, Fornos de Algodres e Vagos, respectivamente para administradores dos concelhos de Celorico da Beira, Fornos de Algodres e Ovar, o Sr. António Moreira de Sá e Mello, escrivão da relação do Porto (…)”.

54O jornalista mantinha uma postura passiva de transmissor de informações emanadas pelo governo, abstendo-se de introduzir qualquer novo dado que facilitasse a compreensão do leitor sobre a escolha governamental. A informação recebida das instâncias administrativas era dada “em bruto”.

55A técnica de registo reforçava a aparência de imparcialidade e descomprometimento com o poder. A lógica da informação destituída de comentário era aqui levada às últimas consequências, mas a submissão à fonte oficial, pela evocação de um regular procedimento administrativo, naturalizava os actos governativos. O debate político era desvalorizado.

56O apolitismo destes jornais ruía “pela mão” dos correspondentes. Enterrados no interior do jornal, imersos nas notícias colectivas, entravam dissimuladamente, nos dois jornais, comentários políticos, com claro posicionamento partidário. A intervenção do jornalista através da prosa dos correspondentes era ocultada pela sistemática referência à exterioridade destes em relação ao jornal, sugerida pela adopção de um tom confidencial, próximo da carta pessoal: “Por aqui pouca importância se tem dado” (Vila Flor, Fora de Lisboa, Diário de Notícias, página 9); “é o que desejamos” (Santarém, Fora de Lisboa, idem, página 6); “pedem-nos para intercederem por meio do Diário de Notícias” (Notícias de Almada, ibidem, página 3); “está um dia de sol lindíssimo” (Guimarães, ibidem, página 4).

57Os dois jornais incluíam grande número de comentários parciais e pró-governamentais.

58Estamos pois em condições de afirmar que no jornalismo informativo o governo tinha um tratamento distinto, que o favorecia.

59Já os jornais de opinião, pouco interessados em transmitir exaustivamente os nomes dos novos quadros políticos, preferiam referir-se a estas nomeações de forma não só casuística como também interpretativa. Não faziam balanços de conjunto; pessoalizavam, traçavam “perfis” de políticos. E introduziam mais informação.

60Nestes jornais, em vez da respeitável reverência, o tom era de desconfiança ou denúncia indignada. A excepção ia para o Popular, pró-governamental, que optava por uma abordagem próxima da dos jornais informativos.

61Nos diários aqui referidos, a entrada e a saída de administradores dos concelhos e de outro pessoal político não assumia forma festiva e consensual. Sem querermos ser exaustivos, veja-se o Vanguarda, sob o título Ecos (notícia colectiva), referindo que em Lamego os regeneradores “lançaram algumas bombas de dinamite” à porta da casa do administrador do concelho, comentando o jornal: “Se o caso fosse cometido por gente que não fizesse parte das caranguejolas ministeriais, com certeza que a lei de 13 de Fevereiro seria aplicada (…). Mas trata-se dos defensores do escandaloso regímen e por consequência têm carta-branca para cometer estas e outras selvagerias”. E não deixava o mesmo jornal de apontar:

“O sistema que nos rege, porém, por tal forma corrompe os homens, deturpa os caracteres e inutiliza as inteligências, que os anos vão passando, o país afundando-se na miséria e os graves problemas continuam de pé (…). Não tenhamos, pois esperanças, de que enquanto em Portugal existir monarquia, se resolvam os complexos problemas”.

62N’O Mundo, republicano, podia ler-se sobre o novo regedor da Lapa: “biografia edificante, como se poderá inferir da leitura de um atestado passado, a 12 de Novembro de 1886, pelo então director do Limoeiro”. O Diário Illustrado, órgão do Partido Regenerador Liberal, no seu extenso editorial, intitulado Hintze, que denunciava uma fraude na câmara de Pombal, afirmava “estranhar que o partido que actualmente governa não tivesse melhor esteio e mais limpo representante”, referindo factos “admiráveis” e “estupendos” e comentando: “Com efeito, há muito tempo que a brandura, encobridora e passa-culpas, dos nossos costumes políticos e administrativos, se não encontra em presença de um exemplo tão completo e frisante” de “impunidade do prevaricador”. Interpelando Hintze em nome dos mais “honestos” e dos mais “cépticos”, rematava: “oferecemos-lhe no artigo de hoje um excelente ensejo para quebrar a tradição ou para a reatar…de caixão à cova”. Ao editorial segue-se, no mesmo jornal, uma crónica apresentando um diálogo ficcionado de Hintze com Pimentel Pinto, sobre a escolha do novo governador civil de Évora. Aqui o leitor atingia um nível máximo de proximidade, ao ser chamado a escutar a “conversa” imaginada, privada e secreta, entre os dois políticos. Face ao jornalismo informativo os jornais políticos apresentavam uma experiência do “político” inversa, logo alternativa.

63Nos jornais de opinião, o acto eleitoral estava presente na interpretação que recaía sobre as escolhas governamentais para os cargos administrativos. Pelo contrário, o Diário de Notícias e O Século tratavam as eleições de forma residual (veja-se o Quadro IV). Nenhum destes jornais referia uma única vez a palavra “eleitor”. Privilegiavam a informação curta, não contextualizada, relativa a conflitos clientelares e rivalidades pessoais entre os influentes locais. As divergências políticas ficavam por explicar.

64Cada facto político ligado ao acto eleitoral surgia disperso, no Diário de Notícias e n’O Século, através de informações avulsas (descontínuas) e circunscritas a uma iniciativa pessoal, localizável no espaço geográfico (elementos de x localidade). A eleição não tinha carácter nacional nem concorrencial. Não se avaliavam propostas, não se apresentavam alternativas, não se confrontavam posições.

65Note-se que a conjuntura política era de indefinição político-partidária. A coligação liberal de progressistas e franquistas, que viria a ser decisiva para João Franco ser chamado a chefiar o governo, ainda não tinha sido anunciada. O Partido Progressista ameaçava a estabilidade governativa com a possibilidade de não participar nas próximas eleições. O Partido Regenerador não formara lista para Lisboa, e esta vinha pela mão de independentes. O receio de um reforço de votos no Partido Republicano na capital era um facto político. Mas nada disto surgia sequer referido no Diário de Notícias oun’O Século.

66No dia 1 de Abril os dois jornais informativos optavam por relegar o acto eleitoral para um lugar secundário da actualidade política. Já a postura dos jornais de opinião era distinta. Estes dedicavam especial atenção às eleições, aos chefes dos partidos monárquicos e à controvérsia política. Alguns davam a ler as próximas eleições num quadro desprestigiante, comentando a corrupção que as envolvia. Veja-se, no republicano Vanguarda, sob o título Eleições, subtítulo Galopins de Sotaina: “Em muitas freguesias de Lisboa já a padrilhada [sic] encetou campanha eleitoral, pedindo descaradamente votos aos seus amigos e apaniguados”. E, noutro subtítulo, Movimento de galopins, o mesmo jornal dava conta de que na Fábrica Victoria, em Lisboa, se preparava uma reunião de “influentes” para “arranjarem votação para o governo, que para aí nos desgraça”. Mesmo o Popular, órgão pró-governamental, não evitava referir-se ao adversário político como corrupto, citando o Notícias de Lisboa:

“«O partido progressista trás atravessado na garganta – e já por mais de uma vez o seu órgão na imprensa a isso se tem referido com azedume – que, na oposição, o partido regenerador se tivesse prestado á rigorosa fiscalização das urnas. Que demónio queria ele fazer nas urnas, que tanto o incomodava a fiscalização?»”.

67E concluía: “O que ele queria sabe-se bem”.

68Mas os jornais de opinião, sobretudo, enfatizavam o comentário, a interpretação e a avaliação do comportamento dos chefes dos partidos face ao acto eleitoral. O debate era partidário e pessoalizado.

69O Popular, órgão regenerador, comentava com particular interesse a aproximação do Partido Progressista ao Partido Regenerador Liberal, da seguinte forma: “O Sr. José Luciano de Castro, tendo dado cabo do partido progressista tenta agora fazer o mesmo ao grupo do Sr. João Franco”; “[p]arece que o Sr. João Franco tendo percebido a tempo as espertíssimas manobras do Sr. José Luciano de Castro, não está disposto a funcionar-se com sua excelência”; esclarecia que “marechais progressistas” estavam “desconfiados” e “não [apoiavam] ideia de fusão” e adiantava que deste novo quadro político

“pode resultar o agravamento da situação no partido progressista e o seu desaparecimento da cena política (…)Só há um meio de resolver a questão: é retirar a chefia ao Sr. Luciano de Castro, cuja vida tem sido uma serie ininterrupta de intrigas e manigâncias com o fim exclusivo de anular todos os que no partido tiveram ou têm merecimento. Não há outro meio para salvar o partido progressista digno de melhor sorte”.

70A Opinião, órgão do partido nacionalista, católico, intervinha zombando do partido progressista, “que anda aí em leilão, oferecido a quem mais der”. Também o republicano O Mundo participava na discussão entre partidos monárquicos: “cresce a irritação entre vários progressistas contra a ideia de fusão” destes últimos com os franquistas.

71A explicitação de programas eleitorais estava ausente dos jornais de opinião de todos os quadrantes políticos. O republicanismo parecia participar, em parte, por intermédio dos seus jornais, nesta visão da política como palco de divergências pessoais. Sem se colocar à margem, inserindo-se numa mesma lógica jornalística de recurso aos “colegas” para participar no debate, encontramo-lo dialogando com os adversários e esclarecendo os partidários.

72Vejam-se O Mundo e A Lucta, nas suas primeiras páginas, a responderem às acusações dos monárquicos sobre as divergências internas no Partido Republicano Português. Citemos A Lucta, que, a este propósito, inseria numa pequena nota sobre a alternativa republicana ao sistema liberal oligárquico: “Descobriram os jornais monárquicos profundas divergências no partido republicano”, a propósito da “escolha do chefe”, e desconhecendo que “o partido republicano nunca teve, não tem, nem virá a ter um chefe, no rigoroso significado do termo. Nenhum dos nossos correligionários tem a pretensão de chefia, cada qual procurando apenas servir como melhor pode o seu partido e a sua causa”.

73No entanto, os jornais republicanos não enfatizavam da mesma forma as eleições. O jornal O Mundo destacava-se de toda a imprensa diária lisboeta no tratamento do acto eleitoral, conciliando duas formas de abordagem distintas. Para isso socorria-se de uma singular paginação, que dividia literalmente em duas partes a primeira página do jornal, combinando seis colunas encimadas por três colunas. Na parte superior, destacava com título e subtítulo “grande”, sobre todas as colunas (uma excentricidade para a época), Partido Republicano e Os candidatos pelos círculos de Lisboa. Na parte inferior integrava extensa notícia colectiva, Ecos & Noticias, que seguia o tratamento do acto eleitoral nos moldes dos seus “colegas”.

74Mas convém determo-nos no tratamento dado à apresentação dos candidatos. Começava o jornal por informar: “Estão definitivamente constituídas as listas”. Referia de seguida a reunião republicana, embora sem mencionar os assuntos tratados e destacando apenas o seu “efeito” político: “O Sr. Dr. Afonso Costa, acedendo a indicações da assembleia, fez também uso da palavra, pronunciando um veemente discurso que causou a maior sensação”; “todos oradores foram aplaudidos”; “assembleia animadíssima”. Seguia-se a apresentação em larga prosa dos candidatos. Afonso Costa

“[é] um trecho da história dum país, afirmando o protesto audaz, inteligente e esforçado dum Futuro contras as infâmias e as bandalheiras de um Passado, e dum Presente. Então esse homem não foi apenas um homem representou uma legião (…). A sua vibrante palavra traduziu toda a energia, toda a inteligência e toda a convicção daquele potente lutador que tudo sacrifica à Republica – a começar pela sua saúde. Como ele empolgou a assembleia, como ele nos fez vibrar de entusiasmo a quantos o ouvimos”.

75Tinha, dizia o jornal, o “dom de parecer sempre um enviado da Justiça – quer acuse os opressores, os tiranos e os espoliadores, quer defenda os oprimidos, os miseráveis e os desgraçados, quando executa a acusação da monarquia como quando faz a defesa da Republica”. Depois, Antonio José d'Almeida: “Tribuno da Revolução, a sua palavra inspira as almas a sugestionar-lhes heroísmos redentores”, e ainda detentor de “qualidades de inteligência e palavra”. Já Bernardino Machado era “[e]ncarnação e símbolo da bondade, o homem no estado da perfeição moral e intelectual”, um “verdadeiro homem de Estado”, com “nobilíssima missão (…), educando com o seu exemplo e a sua palavra a sociedade portuguesa”. Seguiam-se Alexandre Barga, João de Freitas, Bettencourt Raposo, etc..

  • 5 6 Na parte inferior desta primeira página d’O Mundo podia também ler-se, entre outras informações, (...)

76Nem um apelo ao voto. Nem uma indicação programática. Antes a pessoalização do político, através do recurso à mistificação dos candidatos republicanos, arquétipos de um ideal cívico. Fazia-se um desfile de histórias de vida virtuosas, tomadas pela convicção, pela coragem, pela inteligência e pelo estudo5.

77Em conclusão, estamos já em condições de afirmar que os assuntos políticos da actualidade tendiam a obedecer, nos jornais de opinião, a uma construção jornalística que tinha como principal preocupação dar a ler a luta travada no campo político (mesmo que apenas pela óptica da luta político-partidária), contrastando com os jornais informativos, que procuravam destituir os factos políticos do seu carácter conflitual.

78Mas os jornais informativos tinham, no que respeita à informação política, alguns virtuosismos. Estes não se prendiam com a participação directa no debate mas com a capacidade de dar maior visibilidade a informação mais plural.

79O leitor do jornal informativo encontrava uma maior diversidade na cobertura de assuntos políticos ligados a distintas sensibilidades políticas (vejam-se, no quadro IV, o banquete oferecido a um conselheiro regenerador, os nomes dos candidatos republicanos, a conferência de Angelina Vidal num centro republicano e ainda o anúncio de uma sessão do sector monárquico legitimista). Contudo, a informação sobre as várias forças partidárias seguia o figurino reverencial, valorativo e respeitoso presente nas notícias governamentais. Embora mais residual – não esqueçamos o preponderante lugar ocupado pelo governo –, o tratamento era qualitativamente igual (na primeira página do Diário de Notícias, a propósito da apresentação dos candidatos republicanos por Lisboa, lia-se: “os oradores foram muito aplaudidos”).

80Este pluralismo informativo obedecia a certos limites. O Diário de Notícias e O Século tinham critérios de respeitabilidade informativa de índole conservadora. Ambos inseriam informação sobre a facção monárquica legitimista, não constitucional, mas omitiam a convocatória de uma reunião dos socialistas revolucionários, incluída, neste dia, apenas nos jornais republicanos (O Mundo e A Lucta).

81Esta faceta conservadora é também visível na forma como estes diários tratavam os conflitos sociais que fugiam à lógica partidária instituída. Lembremos, a propósito, a luta reivindicativa então em curso na classe corticeira do Barreiro, contra a exportação de cortiça em bruto, que envolvia largas centenas de operários, com paralisações de trabalho e boicote de linhas de caminhos-de-ferro. Nenhum jornal monárquico referia, no dia 1 de Abril, estes acontecimentos. O mesmo se passava com O Mundo. A Lucta fazia uma chamada de atenção na sua primeira página sobre artigo de Jacinto Nunes que sairia no dia seguinte. Mas só o Vanguarda, na página 3, referia sucintamente o estado do movimento, juntando telegrama de Silves enviado aos operários do Barreiro, onde se lia: “os operários corticeiros (…) lamentam deveras não poderem estar junto dos camaradas do Barreiro para engrossar o número dos sedentos de justiça”, mostrando-se solidários com o “pelejar pelo negro pão que almas perversas, com entranhas de abutres, querem tirar” e adiantando que, se “até aqui nos temos mantido cordatos”, “seremos obrigados (…) a um acto que a nossa alma de pacifistas tem repudiado”.

  • 6 Veja-se O Século, com o título A Questão Corticeira e o subtítulo Solução provável do conflito – O (...)

82Em contrapartida, O Século e o Diário de Notícias davam cobertura ao desenrolar destes acontecimentos, mas retiravam-lhes toda e qualquer referência ideológica – isto é, a visão de luta de classe, presente no discurso dos dinamizadores do movimento6.

83Os dois jornais informativos tratavam do caso, mas não o faziam, porém, da mesma forma. O Século puxava-o para a primeira página, acrescentando alguns ingredientes sensacionalistas:

“Continua-se a afirmar ontem que o regimento de infantaria se encontra pronto a marchar para o Barreiro no caso de ali se dar algum acontecimento anormal, afirmando-se também que um dos navios que se encontra fundeado no Tejo está de caldeiras acesas e pronto a seguir para defronte daquela vila. Estes boatos têm corrido insistentemente no Barreiro, dizendo-se também que andavam há dias ali agentes da judiciária e homens pagos pela firma Burnay & Ca, encarregados de vigiar os operários”.

84Já o Diário de Notícias remetia o assunto para a segunda página, chamando para a primeira uma carta de um representante de um empresário corticeiro envolvido nas exportações em bruto (onde se lia: “Não é exacto que o senhor Sagrera tenha trazido onze operários de Espanha para cozer e raspar cortiça”). Ou seja: o Diário de Notícias não só retirava ao movimento toda a carga política como destacava a versão patronal dos acontecimentos.

85O Século seguia, tudo indica, o modelo francês do Le Petit Parisen, sobretudo

“en la apuesta fundamental por la sensación como eje directriz de los contenidos (…). La importancia de los articulos queda subordinada al grado de efectos sentimentales que pueda ser capaz de provocar: emoción, infado, indignación… El objectivo es claro: se trata de buscar permanentemente la sensación como permissa económica para vendar más” (Gallego, Plateri, Ortiz, 1996, p. 313).

86Se olharmos o Quadro I apercebemo-nos de que a sua primeira página apostava em conteúdos sensacionalistas, integrando artigos de interesse humano, devidamente expurgados de dimensão política.

87Leia-se o seu editorial, onde se comentava a tragédia humana provocada por um desmoronamento ocorrido numas minas francesas. Aqui, em tom melodramático, construía-se um elo invisível entre o diário e o leitor, com recurso a um sugestivo “nós”, os “portugueses”, contraposto a uma entidade distinta, a dos políticos, através de um sugestivo “vós”:

“A quantos ontem, no Século, leram os telegramas relativos à tragédia de Courriéres, fazemos a justiça de acreditar que a sua sensibilidade vibrando como a nossa lhes marejasse os olhos de lágrimas. Todos nós portugueses, somos feitos da mesma argila”;

88e terminando:

“Se pois o trabalho é a lei suprema da vida e vós, políticos, nem extraís a hulha, nem lavrais a terra, nem fiais o linho, nem descobris a radio, nem curais a peste, nem escreveis um livro, que quereis que fique de vós se nem ao menos garantirdes a liberdade, a propriedade, a vida, o pensamento, a actividade, o direito e a justiça dos que extraem a hulha, lavram a terra, fiam o linho, disciplinam as forças da matéria e inventam modos e meios de suavizar a dor?”.

  • 7 Este posicionamento parece confirmar-se de outras formas. N’O Século, ainda que “escondidas” em not (...)

89O tom deste jornal informativo assumia-se como vagamente progressista7 e defensor dos leitores – os mais fracos, os mais desfavorecidos – contra a elite política dominante. Não por acaso, o jornal tendia a realçar informação que recaía sobre reivindicações sectoriais (veja-se a sua primeira página, sob o título Industria de Moagem).

90Esta era uma postura jornalística de que o Diário de Notícias não partilhava. Nascido em pleno período da regeneração, este jornal formara-se, e inspirara a sua actividade jornalística, numa cultura política liberal que valorizava a tolerância e privilegiava a conciliação política. Servia assim, de perto, o legalismo reformista, aspirando a influir na progressiva formação cívica de uma comunidade política alargada. O jornal não pretendia confundir-se nem com os políticos nem com os leitores. A sua vocação formativa, legalista e conciliadora mantinha-se intacta em 1906. O seu jornalismo conservador, paternalista, prudente e reverencial era visível na fórmula protocolar que seguia na paginação de informações de carácter político (veja-se o Quadro I), onde governo, ministros, governadores civis e actos administrativos tinham honras de primeira página. A função de “educar” os leitores era assegurada ainda por critérios de individualização de informações bem distintos dos d’O Século; e observe-se como colocava na sua primeira página um Louvor a um funcionário público e uma ordeira representação operária pedindo aumento de salários ao ministro (Operários do Arsenal da Marinha). Ambas as notícias surgiam n’O Século imersas em notícias colectivas.

Conclusão

91No dia 1 de Abril de 1906, o apolitismo que o Diário de Notícias reclamava e de que O Século partilhava não correspondia à ausência de temas políticos. Os dois jornais enchiam as suas páginas com actos de governação administrativa. E esse apolitismo muito menos remetia para uma lógica informativa de desqualificação do facto político: os dois jornais inseriam na sua primeira página respeitosas informações de carácter governativo.

92Ser apolítico não significava apenas não pertencer a nenhum partido, mas sobretudo abster-se de participar de forma clara no debate político, reservado aos órgãos de imprensa partidária. “Abster-se” de participar neste debate significava silenciar a sua existência .

93A imparcialidade vinha da recolha diversificada de factos político-partidários, isolando-os uns dos outros, sobrepondo-os e igualando-os. Em termos de lógica jornalística, isto equivalia ao império dos factos e das ocorrências sobre o contexto – leia-se o enquadramento de ideias –, as propostas alternativas ou a luta por protagonismos políticos. Isto estava longe de significar total ausência de comentário, mas este obedecia a regras precisas: era curto e sempre laudatório.

94O jornalismo d’O Século e do Diário de Notícias vivia do registo de factos avulsos, sem aparente hierarquização temática. Mais do que informar, esta imprensa transmitia, pelas suas convenções jornalísticas (Schudson, 1995), uma forma de ler o político: era uma arena distante e inatingível. Tendia-se a apresentar todas as tomadas de posicionamento político como igualmente dignas e representativas. O governo surgia, porém, favorecido.

95Na luta política, a divisão de tarefas jornalísticas entre os jornais informativos e os de opinião era clara. Os jornais políticos estavam no centro do debate político; eram incontornáveis para quem pretendesse participar nele. Mesmo vigorando um estreito entendimento da discussão política na óptica partidária, eram os jornais de opinião quem fornecia um contexto, um significado, uma dimensão controversa à actualidade informativa.

96Porém, a redução da escala de observação presente nesta análise permitiu, ainda, esclarecer um facto nem sempre devidamente salientado pelos historiadores: a importância da informação actual nos jornais político-partidários. Como noutro lugar desenvolvemos, estes jornais não se distinguiam apenas pelo conteúdo da opinião; a sua identidade era construída, em grande medida, pela informação actual que publicavam. Além de que, frequentemente, a posse de informação política em primeira mão era o meio mais eficaz não só para conseguir entrar no debate jornalístico (leia-se para ter repercussão nos outros jornais políticos) como para interpelar o poder político.

Por que as notícias são diferentes em diferentes veículos?

Cada um destes meios tem suas características próprias. Portanto, a divulgação de notícias depende do conhecimento sobre como funcionam os diferentes veículos de comunicação para atender plenamente às exigências editoriais e operacionais de cada qual.

Quais são os elementos que compõem a notícia?

Sua estrutura divide-se em: título, lide, informações secundárias e detalhes. A linguagem deve ser objetiva, acessível e impessoal, atendo-se a representar a realidade dos fatos, sem inserir julgamento pessoal.

Qual é a principal diferença entre uma reportagem e uma notícia?

Enquanto a notícia trata de um caso específico, a reportagem fala de um tema mais amplo. Esse tipo de gênero apresenta informações mais aprofundadas sobre temas que despertam a atenção do público.

Quais são as características comuns a notícia é a reportagem?

Desse modo, enquanto a noticia é, em maior parte, informativa e impessoal, a qual apresenta somente os fatos de tal acontecimento, a reportagem, além disso, possui um teor opinativo, ou seja, apresenta a opinião e/ou posicionamento do autor sobre o tema, sendo textos assinados pelo repórter.