Quais são as consequências sociais das transformações no mundo do trabalho?

Neste mês de agosto, a tero convida publica o texto da professora Sônia Regina Martins, que apresenta algumas das principais teorias sociológicas sobre as transformações pelas quais a sociedade do trabalho vem passando nas últimas décadas. A consciência de tais transformações é essencial para se compreender as consequências dramáticas do desmonte dos direitos sociais, sobretudo dos trabalhistas e previdenciários. Afinal, como diz o texto, “para extrair altas taxas de exploração da força de trabalho, num mercado cada vez mais competitivo, com perdas de direitos trabalhistas, com grande precarização e desemprego, a imposição de uma nova disciplina, sociabilidade e sujeição ocorrem através de métodos cada vez mais violentos e coercitivos. Boa leitura!


Por Sônia Regina Martins

As transformações que ocorrem no capitalismo atual podem ser classificadas e analisadas, no âmbito de uma perspectiva crítica, de vários ângulos e por várias vertentes teóricas e políticas. Apesar das diferentes abordagens e enfoques, elas convergem para a constatação de um processo crescente de deterioração das condições de trabalho e de vida da maioria da população mundial. O agravamento das desigualdades e exclusões sociais nos remetem ao mundo do trabalho e ao seu exército de reserva, em que as contradições e as consequências de um capitalismo desregulado, financeirizado, rentista, altamente concentrador e centralizador incide com maior virulência. 

O desemprego estrutural, devido ao pífio crescimento econômico, associado a um conjunto de inovações tecnológicas, criadas com o objetivo de eliminar o máximo possível de força de trabalho, explicam, em parte, a situação atual. As terceirizações das atividades-meio e atividades-fim dos processos produtivos impulsionam a fragmentação da classe trabalhadora, dificultando sua organização para a disputa com o capital. Essas características compõem um quadro de perdas das condições materiais dos trabalhadores que se completam com as políticas neoliberais implementadas com o intuito de eliminar direitos trabalhistas e combater instituições públicas de fornecimento de bens e serviços coletivos à população.   

As mudanças no mundo do trabalho orientadas pelo princípio da flexibilidade, ou especialização flexível, contrariam essencialmente os preceitos de uma sociedade salarial, baseada nas proteções e direitos conquistados pelos trabalhadores organizados em sindicatos e partidos políticos durante o século XX. É importante ressaltar que a abrangência da sociedade salarial incluía trabalhadores de dentro e de fora do mercado de trabalho, uma vez que havia uma legislação que amparava os desempregados, inibindo os males da pobreza e do abandono, cada vez maiores e visíveis nas ruas das grandes metrópoles brasileiras.

Ademais, cabe frisar que a sociedade salarial consistiu um processo singular, circunscrito aos países europeus. Porém, algumas de suas características se disseminaram pelo mundo periférico e subdesenvolvido e, mais que isso, tornou-se um modelo e um ideal a ser buscado por setores progressistas desses países. Nesse sentido, podemos mencionar as experiências de governos latino-americanos com traços desenvolvimentistas que trilharam caminhos de reformas sociais, embora tímidas, entre os quais, os governos petistas, que procuraram incentivar a geração de empregos formais com proteção social.   

A sociedade salarial fundamentou-se num compromisso social que buscava um equilíbrio entre as necessidades dos trabalhadores e os interesses do mercado, ou seja, entre as condições adequadas e dignas de reprodução da força de trabalho e as exigências da produção capitalista. Segundo Castel (1998), a sociedade salarial é uma sociedade de assalariados que pressupõe a existência de pleno emprego numa condição na qual estão relacionados garantias e direitos. O cerne de sua concepção é uma noção de segurança associada ao trabalho e não apenas à propriedade.

As regulações do trabalho se constituíram num pilar sólido do funcionamento da sociedade salarial e numa barreira às investidas do mercado para além do compromisso social estabelecido entre os grupos em concorrência. A constituição das sociedades salariais percorreu trilhas distintas, de acordo com as especificidades históricas dos diversos países que em momentos e ritmos diferentes instituíram direitos trabalhistas (férias remuneradas, salário anual adicional, aposentadorias, licença saúde, aumento salarial de acordo com o aumento da produtividade etc.), e sociais (educação e saúde públicas), atingindo assim um capitalismo mais distributivo e níveis mais elevados de civilização. 

Porém, esse sistema social como um todo e, também de modo parcial, vem sofrendo ataques dos núcleos dominantes do capital, através de suas estratégias de superação da crise que o afeta no seu âmago. As artimanhas do capitalismo são muitas e todas repercutem nas relações de trabalho. Atualmente, estaríamos vivendo a experiência histórica de esfacelamento da sociedade salarial devido aos ardis do capital financeiro que, para manter altas taxas de lucros, investe maciçamente no rentismo, em detrimento da acumulação produtiva. Esse mecanismo de acumulação de capitais está intimamente mancomunado com a onda neoliberal.

No presente momento, o neoliberalismo se configura como um conjunto de ideias e ações que visam a desregulação do capitalismo sob a proteção de um Estado repressivo. Para extrair altas taxas de exploração da força de trabalho, num mercado cada vez mais competitivo, com perdas de direitos trabalhistas, com grande precarização e desemprego, a imposição de uma nova disciplina, sociabilidade e sujeição ocorrem através de métodos cada vez mais violentos e coercitivos.

O Estado vem se desincumbindo da função de reprodução de uma parcela da força de trabalho, assumida desde meados do século XX, quando então se estabeleceram pactos de convivência entre o Capital e o Trabalho, em torno da ideia da administração dos conflitos. As crises das últimas décadas que marcam a trajetória do capitalismo mundial, além de fatores históricos significativos, como o fim do socialismo real, provocaram a ruptura de acordos, políticas e concessões que assinalavam que todos poderiam obter ganhos e benefícios com o crescimento e desenvolvimento do capitalismo.  

Contrariando esses arranjos de convívio das contradições inerentes à acumulação capitalista, uma das estratégias inventadas pelo capitalismo atual para enfrentar a sempre temida classe trabalhadora e a ameaça constante da queda da taxa de lucros, foi a concepção de uma nova forma de organização e gestão do trabalho e da produção, inspirada nos princípios toyotistas. O seu impacto no processo de reestruturação produtiva no mundo, e também no Brasil, foi considerável, uma vez que suas inovações foram postas em prática em vários lugares e setores produtivos. Nesse sentido, vamos pensar na quantidade de terceirizações que aconteceram nas últimas décadas. O princípio da especialização flexível visa a focalização das atividades da empresa em produtos e tarefas que contenham maior conteúdo tecnológico e, portanto, maior valor agregado, em que seja possível garantir maior competitividade e lucratividade. As outras atividades complementares deixam-se para firmas “terceiras” que passam a fazer parte do processo produtivo, numa relação de dependência, e seus empregados com contratações frágeis e parcos direitos trabalhistas. 

A reestruturação produtiva ocorrida desde os anos 1990 no Brasil teve como complemento a desestruturação do trabalho orientada por uma diretriz neoliberal de flexibilidade do trabalho em três dimensões, conforme Harvey (2011): a flexibilidade temporal, que significa a intensificação da produção – produzir mais num tempo menor – com a introdução de novas tecnologias, agilizar os meios e métodos para diminuir o tempo entre a produção e o consumo; a flexibilidade numérica, já que o número de trabalhadores depende da necessidade da produção – admitir/demitir, contrato por tempo parcial, subcontratação, contratação temporária, etc; finalmente, a flexibilidade funcional que significa a multifuncionalidade, o trabalhador não pode ficar preso à sua função, mas pode e deve desempenhar várias tarefas ou trabalhos parciais. Essa característica foi responsável por muitas demissões, provocando enormes contingentes de desempregados, assim como ocasionou um excesso de atividades e tarefas para aqueles trabalhadores que permaneceram nas empresas, pois tiveram que realizar o trabalho dos demitidos. 

Através da literatura especializada, sabemos que, na prática, tais princípios significaram maior precarização do trabalho e desemprego, pois, segundo Castel, a flexibilização das relações de trabalho repercute através de três dinâmicas relacionadas à configuração do mercado de trabalho. A primeira se refere à desestabilização dos estáveis. Segundo Castel, essa categoria de trabalhadores se refere àqueles que ocupavam uma posição sólida na divisão clássica do trabalho. Quem eram eles? Eram aqueles trabalhadores que estavam há mais tempo na empresa e que por isso desfrutavam de uma certa segurança. Trata-se dos trabalhadores que envelhecem: jovens demais para a aposentadoria e velhos demais ou sem recursos para reciclar-se.  Esses estariam sendo excluídos do mercado de trabalho.

A segunda diz respeito à instalação da precariedade, ou seja, às alternâncias de período de desemprego, de trabalho temporário, de “pequenos trabalhos” etc. Essa condição afeta, principalmente, os jovens, que aprendem a viver sem muitas perspectivas de futuro.  A terceira tendência é o número de “ trabalhadores excedentes”, ou seja, os “inúteis no mundo”, estes não estão integrados e, talvez, não sejam integráveis. Vemos todos os dias as quantidades de trabalhadores que se desvencilharam de alguma forma de trabalho formal e, por isso, procuram formas alternativas de contratação de trabalho.

Muitos desses hoje em dia moram nas ruas em situação de extrema miséria e juntam-se com seus pares que fazem uso abusivo de drogas e álcool para poderem sobreviver nas condições mais adversas e desumanas que nossos olhos estão acostumados a assistir cotidianamente. Podemos afirmar que estamos diante do desmoronamento da sociedade salarial ou mesmo de suas tentativas e arremedos que vivemos nas décadas de governos progressistas e social-democratas. A barbárie caminha a passos largos, desmontando os sistemas educacionais, de saúde, da previdência, do trabalho e todas as instituições criadas para a proteção dos cidadãos. 


Sônia Regina Martins é professora universitária no Instituto Federal de São Paulo, formada em Ciências Sociais pela USP, com 20 anos de experiência na área de educação e pesquisa. Trabalhou na Faculdade Oswaldo Cruz, Escola Sindical da CUT, entre outros lugares.

Referências

CASTEL, R. As metamorfoses do trabalho. IN: FIORI, J. L.; LOURENÇO, M. S.; NORONHA, J. C. (orgs.). Globalização: o fato e o mito. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998.

HARVEY, D. O enigma do Capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.

Quais as consequências do mundo do trabalho?

A precariedade e a vulnerabilidade social se encontram generalizadas e constituindo um processo social influente no modo de vida. A reconfiguração do mundo do trabalho repercute na identidade, nas condições de vida, na sociabilidade e na saúde dos trabalhadores.

Quais são as transformações no mundo do trabalho?

Rotatividade, informalidade, múltiplos vínculos laborais, vulnerabilidade, precarização, adoecimentos, medo, insegurança, estresse, ansiedade, depressão caracterizam esse novo mundo do trabalho. Essas transformações no mundo do trabalho ganham rapidamente dimensões globalizadas e estão se acelerando e expandindo.