É possível perceber a influência da antiguidade clássica nesse trecho de Os lusíadas por que

Leia o soneto de Luís Vaz de Camões para responder à questão:

Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta sida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cd me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

No poema de Camões, podemos perceber algumas características do Classicismo. São elas:

a) equilíbrio entre os transes existenciais do poeta com a disciplina clássica: emoção e razão, expressão pessoal e imitação são concebidas por meio de uma dicção sóbria, contida, mas nem por isso menos comovente. No poema também podemos perceber que, embora o homem sempre queira atingir o ideal e a perfeição, ele sempre encontra em seu caminho a restrição imposta pela própria condição humana.

b) o assunto principal do poema é o sofrimento amoroso do eu lírico perante uma mulher idealizada e distante. Há uma ambientação aristocrática da corte e uma forte influência provençal na lírica camoniana.

c) predomínio da musicalidade e grande influência da tradição oral ibérica. O assunto principal do poema é o lamento da moça cujo namorado partiu. Os paralelismos semânticos, o refrão, reiterações e estribilho estão presentes em seus versos: esses elementos tinham como finalidade facilitar a memorização do texto para que ele fosse cantado.

d) O poema de Camões é marcado por uma linguagem rebuscada, permeada por figuras de linguagem de difícil compreensão. Seu tema principal é a luta entre classes sociais e as crises religiosas.

1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ- UNIOESTE CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, EDUCAÇÃO E LETRAS- CCHEL COLEGIADO DE HISTÓRIA THAMARA PARTEKA ANTIGUIDADE E MEDIEVALISMO EM UM SÓ TEXTO: A CONSTRUÇÃO DE OS LUSÍADAS E AS VICISSITUDES DE SEU TEMPO Marechal Cândido Rondon- Paraná

2 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ- UNIOESTE CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, EDUCAÇÃO E LETRAS- CCHEL COLEGIADO DE HISTÓRIA THAMARA PARTEKA ANTIGUIDADE E MEDIEVALISMO EM UM SÓ TEXTO: A CONSTRUÇÃO DE OS LUSÍADAS E AS VICISSITUDES DE SEU TEMPO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História do campus de Marechal Cândido Rondon da UNIOESTE, como requisito básico para obtenção do título de Licenciado em História. Orientador: Prof. Dr. Marcos Luís Ehrhardt Marechal Cândido Rondon- Paraná

3 Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Fernando Pessoa ( ) Que sem os deuses, o homem não é nada! Os faécios me levaram para Ítaca. Mas foi Poseidon quem permitiu que eu seguisse minha jornada, para que eu pensasse em suas palavras. E compreendi que eu era apenas um homem no mundo. Nada mais e nada menos. Ulisses- Homero 3

4 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho ao meu namorado, amigo e companheiro Renan Botke de Oliveira, pelo seu amor incondicional, pela felicidade e alegria que me proporciona. Por me ensinar pintar o céu com flores quando as trevas dominam. Por sua paixão pela mitologia, pelas artes e por não só me incentivar a sonhar, mas sonhar junto comigo. Wouldn't it be nice if we were older Then we wouldn't have to wait so long And wouldn't it be nice to live together In the kind of world where we belong. (Carl Wilson) Wouldn't it be nice -Beach Boys 4

5 AGRADECIMENTOS Agradeço a contribuição de todos para elaboração deste trabalho, bem como aqueles que me apoiaram e me ajudaram a evoluir durante esses quatro anos de curso. Como Homero invocou as ninfas de Hipocrene e Camões invocou as ninfas do Tejo eu invoquei Naipi e Tarobá as grandes forças do Iguaçu para realizar este trabalho. Por isso sou grata a Tupã, Krishna, Deus, Jeová, Buda, Ganesh, Atena, Gaia, enfim a toda e qualquer entidade que me ajudou a concluir este trabalho me fornecendo harmonia, tranquilidade, paciência. Agradeço Homero, Camões e ao povo grego e português por terem contribuindo com a minha formação e por terem deixado um legado precioso para toda a humanidade. Sou feliz pelos indígenas, africanos, árabes e indianos por resistirem a dominação e procurarem preservar elementos de sua cultura, pois somente isso dará a liberdade de constituírem-se como sujeitos, de escreverem sua história, de cultuarem seus deuses e assim enriquecer a humanidade através de um mundo diverso e plural. Agradeço aos meus pais que mesmo com suas limitações e dificuldades me ajudaram neste processo. Mesmo que, por vezes, me criticaram ou duvidaram, mas isso foi fundamental para enfrentar barreiras e me abastecer com forças extra-humanas. Agradeço também a ajuda financeira que me deram, por mais limitada e difícil, foi fundamental para que eu estudasse em outra cidade. Agradeço a minha irmã pela influência direta e indireta aos clássicos e a poesia, além das críticas tão presentes que me serviram como motivos para refletir com maior intensidade e para me esforçar mais. Agradeço ao meu irmão por ter sacrificado o início de sua adolescência ficando sozinho, enquanto eu e a mãe estudávamos e o pai trabalhava fora. Agradeço ao Renan que mais que um namorado, se mostrou um amigo e um companheiro incomparável. Agradeço pela coragem, paciência, por ter acreditado em mim quando ninguém acreditou, quando inclusive eu me neguei a olhar para frente. Agradeço pela ajuda financeira, pelo apoio emocional e pelo estímulo. Agradeço por ter ido morar em Rondon e viajar diariamente a Palotina, reconheço o sacrifício que fez, e, por isso lhe sou grata. Sou feliz em tê-lo ao meu lado, por me dar fé e amor de forma incondicional. Agradeço a Mirtes, Celso e Milena pela paciência, amor e por ter disponibilizado sua casa, nestes momentos finais. Agradeço aos professores que me ajudaram a sair da menoridade como diz Kant, dentre eles tenho um agradecimento especial a meu orientador Marcos L. Ehrhardt por ter dedicado dois anos de sua vida a me ajudar nesta pesquisa. Agradeço aos livros emprestados, as reuniões, ao apoio psicológico e emocional em um lugar que a História Antiga não faz sentido. Agradeço pela sua influência nos textos gregos e romanos e por me ensinar amar a filosofia e a cultura clássica. 5

6 Agradeço ao Robson Laverdi por ter me apoiado emocionalmente, intelectualmente e espiritualmente em um momento único na minha jornada acadêmica. Sou grata a ele por se permitir me identificar perante as perseguições políticas e intelectuais encontrada no campus desta Universidade. Sou muito feliz por ter encontrado apoio no professor Osnir que além de me possibilitar conhecer diferentes universos através da psicologia, me ajudou enfrentar meus medos mais sombrios, meus dogmas intocáveis, me libertou de traumas, angústias e jogou pó de felicidade em mim para que eu tivesse força para enfrentar a vida. Agradeço ao Márcio por contribuir não apenas na minha jornada acadêmica, mas na minha vida pessoal: demonstrando valores como a humildade, alegria e principalmente a reivindicação social. Agradeço as contribuições dos professores Danilo e Moisés que nestes dois anos me apresentaram diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, por terem compartilhado o aprendizado de outros horizontes e por terem lido partes deste trabalho, contribuindo com sugestões, o que foi fundamental para tê-lo estruturado desta forma. Agradeço as professoras Geni e Meri por terem se preocupado com meu trabalho, fazendo críticas, sugestões, por terem visto e revisto este projeto tantas vezes. Pois foi através deste processo que amadureci enquanto pesquisadora. Agradeço aos meus colegas que participam do trabalho no Centro de Pesquisa Documentação do Oeste do Paraná (CEPEDAL), principalmente ao Mancha pelo apoio e a contribuição na minha formação dentro e fora da sala de aula, por ter me ajudado em projetos, relatórios e demais fazeres. Agradeço especialmente ao Jael que me sugeriu a ideia de trabalhar com Homero e Camões, se não fosse nossas conversas talvez este trabalho não existisse. Agradeço a Daniele pelas constantes criticas e discussões, pois isso me faz rever diariamente minhas crenças, por vezes mudar, por vezes reafirmar meus valores. Sou feliz em ter ela como amiga, pois compartilhamos muitos conhecimentos e muitos momentos de nossa vida juntas, é uma pessoa que adoro conversar, mesmo que na maioria das vezes seja para contrariar. Agradeço ao Tiago pela amizade, pelo apoio, por permitir me identificar com sua trajetória e por me permitir vislumbrar novos horizontes. Agradeço a Kellin por me ajudar muito nestes momentos finais, disponibilizando inclusive sua casa e sua cama, além do apoio e força. Agradeço a Shay por em cada conversa me mostrar um novo olhar sobre o mundo, agradeço por sua peculiaridade de valorizar coisas simples. Agradeço a Renata pelo apoio e dedicação a minha amizade durante momentos muito dificultosos. Sou grata a Cintia Melo por ter me disponibilizado sua casa e paciência em um momento que quase desisti do curso. Agradeço a Elaine e o Dan por terem se disponibilizado a todo momento que os chamei para tocar em eventos do curso de história e letras. Agradeço as minhas estimadas Marcia 6

7 Kristinen, Ana Luiza, Kelli Hedel e Sérgio pela amizade, apoio, dedicação e pelos conselhos. Agradeço a Fabíola, Hiolanda e Jeff pelas conversas, pelos vinhos, pelas loucuras e pelo suicídio. Agradeço o Pedro, Daiane, Fernando, Jaqueline e Carol, por terem vivido momentos preciosos de suas vidas comigo. Agradeço pela paciência, por viver uma luta diária dentro e fora da Universidade. Agradeço aqueles que disponibilizam em me contratar, como a Unioeste, a prefeitura de Marechal e os bares e pizzarias da cidade, somente através destes pude me manter na Universidade. Agradeço aos meus colegas de trabalho Maide, Eliete, Judite, Jhonn e Noili, que me ajudaram muito em momentos de dificuldades, agradeço pela amizade e pelas conversas. Agradeço a Clarice Lottermann que mesmo não tendo obrigação alguma foi uma das pessoas que mais me ajudou e me apoiou neste processo, me emprestando livros, participando de reuniões comigo. Sou eternamente grata por ter me apresentado a literatura infantil, a contação de histórias e por ter me permitido cursar sua magnífica disciplina do curso de letras. Agradeço pelas conversas, sugestões e conselhos. Agradeço a todo colegiado de letras que me apoiou e me fortaleceu, por vezes, bem mais do que o de História. Meu abraço especial ao professor Antônio Donizete por suas aulas, pelo seu conhecimento, pelos seus livros, pela sua paixão à literatura e as artes em geral. Meus comprimentos a Bea que não deixava nem piscar em suas aulas de tão comovida e maravilhada que ficava. Agradeço ao Ciro pelas aulas de latim, que me fez compreender um pouco mais a cultura romana. Agradeço a Luciane e Nelza por terem compartilhado comigo seus conhecimentos. Agradeço a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) pelas diversas oportunidades que me disponibilizou como acadêmica. Agradeço também ao CNPQ por ter disponibilizado, neste ano, uma bolsa para a realização desta pesquisa. Agradeço a amizade de cada uma das pessoas citadas aqui e outras que não pude fazê-lo em decorrência do espaço, mas apresento a minhas sinceras estimas, meu agradecimento por tudo o que recebi. 7

8 Lista de Figuras Figura 1: Sepultura de Luis Vaz de Camões Figura 2: Mapa localizando o espaço geográfico e a localização da narrativa Figura 3: Máquina do mundo

9 Sumário Lista de Figuras Sumário Resumo Abstract INTRODUÇÃO CAPÍTULO I: A HISTÓRIA DE PORTUGAL: DO MOVIMENTO INTELECTUAL ÀS GRANDES NAVEGAÇÕES A CONSTRUÇÃO DO RENASCIMENTO E O DEBATE HISTORIOGRÁFICO AS GRANDES NAVEGAÇÕES: os navegadores e a escola de Sagres OS LUSÍADAS: resistências e decepções das grandes navegações O ENCONTRO DE DOIS MUNDOS: a visão de Camões sobre a história portuguesa e os orientais NAVEGADORES CHEGAM AO PARAÍSO: as recompensas e o reconhecimento das grandes navegações CAPÍTULO II- PENSAMENTO MEDIEVAL: UMA HERANÇA DA ANTIGUIDADE A INFLUÊNCIA CLÁSSICA O PENSAMENTO MEDIEVAL NEOPLATONISMO: AS CONTRIBUIÇÕES DE SANTO AGOSTINHO E DE PETRARCA PARA A FILOSOFIA CAMONIANA A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA, ÁRABE E TOMISTA NA IDADE MÉDIA Astronomia e Navegação: a influência dos gregos e dos árabes em Os Lusíadas A INFLUÊNCIA DOS ROMANCES DE CAVALARIA E O IDEAL CAVALHEREISCO EM OS LUSÍADAS GIGANTES, DRAGÕES E MONSTROS: INFLUÊNCIA DA MENTALIDADE ANTIGA E DO IMAGINÁRIO CRISTÃO CAPÍTULO III - AS ESCOLHAS DO POETA: INFLUÊNCIAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA NO TEXTO CAMONIANO O LÍRICO O ÉPICO ESTUDO DE CASO: a origem de Roma e de Portugal e a divinização de seu povo nas épicas virgiliana e camoniana

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

11 RESUMO A Literatura da Antiguidade Clássica influenciou e tem influenciado constantemente literaturas de outras épocas, seja pela capacidade de discutir temas universais e sentimentos humanos, seja pela complexa estrutura e recursos estéticos que utiliza para construir a narrativa. O que se pretende discutir neste trabalho é o acesso que Luis Vaz de Camões teve à algumas obras e ideias da Antiguidade, considerando que alguma dessas ideias chegaram até o poeta reinterpretadas pelo paradigma Medieval. Desta forma, tivemos que acessar alguns pensadores medievais, não só literários, mas cientistas, filósofos e cronistas. Para construir a narrativa analisada aqui, Os Lusíadas, o autor demonstra ter lido Homero,Virgílio, Platão, autores neoplatônicos, Fernão Lopes, Pedro Nunes, Petrarca, a Bíblia e além de possivelmente ter acessado diários de bordo. Camões era soldado, participou das navegações e nas guerras de conquista ele tinha conhecimento sobre ciência, e principalmente sobre a astronomia e isto não só por ter acesso aos livros, mas porque ela fazia parte da sua vida, como orientação durante as viagens marítimas. O autor analisado serve para compreender a sociedade portuguesa em um contexto de grandes conquistas, grandes transformações, mas ao mesmo tempo, ele nos serve para refletir que essas mudanças não foram instantâneas e que muitos valores medievais faziam parte do homem do Renascimento, e segundo Le Goff, permaneceu até o século XVIII. Assim diversos temas que Camões discute na epopeia nos serve para compreender como parte da sociedade portuguesa pensou as navegações (sua aceitação ou resistência), quais eram os condições das navegações e os valores defendidos, além de analisar como o poeta lusitano pensou os orientais (sujeitos das terras descobertas ), pois compreendemos que seu pensamento não é algo isolado, mas está em dialogo com a sociedade em que vive. Ao mesmo tempo, baseados na perspectiva da História Intelectual, procuraremos identificar como ele leu diferentes autores que defendiam valores pagãos e Antigos e reinterpretou-os a ponto de serem aceitos numa sociedade Cristã Inquisitória. Palavras-chave: Os Lusíadas, História Intelectual e Antiguidade Clássica. 11

12 ABSTRACT The Classic Antiquity`s literature has influenced and is constantly influencing literature of other periods, be it by the capacity of discussing universal themes and human feelings, or by the complex structure and aesthetic resources that it uses to build its narrative. What it`s aimed to discuss in this article is the access that Luis Vaz de Camões had in some titles from the Antiquity, considering that some of those ideas came to the poet reinterpreted by the medieval paradigm. This way, we had to access some medieval thinkers, not only the literary, but scientists, philosophers and chroniclers. To build the narrative hereby analyzed, The Lusiad, the author shows he has read Homer, Virgil, Plato, neoplatonic authors, Fernão Lopes, Pedro Nunes, Petrarca, the Bible and possibly he had accessed some logbooks. Camões was a soldiers, he participated of the navigation and in the wars of "conquest", he had knowledge about science, and mainly about astronomy and this not only for having access to books, but because it was part of his life, as orientation during his voyages. The analyzed author is used to comprehend the Portuguese society in a context of great "Conquests", great transformations, but at the same time, he helps us to reflect that those changes weren't instantaneous e that many medieval values were part of the Renascence man, and according to Le Goff, it remained up to the 18th century. Many themes that Camões discusses in the epopee make us comprehend that part of the Portuguese society reflected the navigation (its acceptance or resistance), which were the conditions of the navitation and the defended values, besides analyzing as the Lusitanian poet reckoned the eastern people (individuals from the "discovered" lands), because we comprehend that his thinking is not something isolated, but it`s in dialogue with the society in which he lives on. At the same time, based on the perspective of the intellectual History, we aim to identify how he read different authors that defended Pagan and Old values and reinterpreted them to the point of being accepted in a inquisitor Christian society. Key words: The Lusiads, Intellectual History and Classic Antiquity. 12

13 INTRODUÇÃO Para dar início a este trabalho, que gira em torno da obra Os Lusíadas e do seu autor, Luis Vaz de Camões, é interessante pensar o lugar que ele ocupou na sua época, mas também o que ocupa nos dias contemporâneos. Ao buscarmos informações sobre ele, observamos que seu túmulo se encontra no Mosteiro dos Jerônimos, construído no século XVI para invocação de Santa Maria, para proteger os navegantes. O mosteiro está localizado à entrada do Rio Tejo. Nas proximidades está a praça do Império, que, no século XVI, era a praia do Restelo, mencionada por Camões representando a resistência às Grandes Navegações. Esse rio e essa praia são o lugar de onde saiam os navios rumo à África, à Índia e, posteriormente, rumo ao Brasil, pois desse ponto de partida se tinham os melhores ventos e as melhores condições de navegação. Além disso, o túmulo de Camões 1 se encontra ao lado do túmulo de Vasco da Gama (como aparece na foto abaixo). Isso demonstra a importância que se deu a ele não apenas na história e na poesia, mas nas chamadas Grandes Navegações, por ter participado delas como soldado e por ter deixado testemunho escrito para que muitos pudessem ver a glória do povo português. Figura 1: Camões na frente e Vasco da Gama ao fundo 2 Para termos condições de fazer uma análise da obra e do pensamento do autor, é interessante que tenhamos algumas informações biográficas, uma vez que seu nome será referenciado por todo o 1 O site do mosteiro afirma que as esculturas de Camões e de Gama foram feitas no século XIX pelo escultor Costa Mota. Diponível em: < Acesso em: 28 out Foto de Glauco Adams. Disponível em: < Acesso em: 28 out

14 trabalho. Camões nasceu em Lisboa em Não tinha bons recursos materiais, mas sua origem era nobre, o que justifica seu acesso à corte de João III e a sua intelectualidade. Seus ancestrais já estavam vinculados à produção de uma poesia nacional e à navegação. Seu pai era Simão Vaz de Camões e sua mãe Ana de Sá e Macedo. Por via paterna, Camões seria trineto do trovador galego Vasco Pires de Camões, e, por via materna, aparentado com o navegador Vasco da Gama. Estudou em Coimbra, interessando-se por História, Cosmografia e Literatura Clássica. Ainda se afirma que Camões era um boêmio, se apaixonava com certa facilidade e arrumava muitas confusões, por isso foi preso duas ou três vezes por brigas, endividamento e roubo. Serviu como soldado em Ceuta, por volta de , batalha na qual perdeu um olho. Em 1552, de regresso a Lisboa, esteve preso durante oito meses por ter ferido, numa rixa, Gonçalo Borges, um funcionário da corte. Data do ano seguinte a referida Carta de Perdão, ligada a essa ocorrência. Nesse mesmo ano, seguiu para a Índia. Nos anos seguintes, serviu no Oriente, ora como soldado, ora como funcionário. Acredita-se que esteve em território chinês, onde teria exercido o cargo de Provedor dos Defuntos e Ausentes, a partir de Em 1560 estava de novo em Goa, convivendo com algumas das figuras importantes do seu tempo (como o vice-rei D. Francisco Coutinho ou Garcia de Orta). Em 1569 iniciou o regresso a Lisboa. No ano seguinte, o historiador Diogo do Couto, amigo do poeta, encontrou-o em Moçambique, onde vivia na penúria. Juntamente com outros antigos companheiros, conseguiu o seu regresso a Portugal, onde desembarcou em Dois anos depois, D. Sebastião concedeu-lhe uma tença 3, recompensando os seus serviços no Oriente e pelo poema épico que então publicara, Os Lusíadas. Camões morreu em 10 de junho de 1580, ao que se diz, na miséria. No entanto, é difícil distinguir aquilo que é realidade, daquilo que é mito e lenda romântica, criados em torno da sua vida, uma vez que a memória construída que perpassa Camões é determinante na realidade social do presente. Camões viveu em um período de choque de valores, de transformações sociais, e é uma testemunha direta desse processo. Esse hibridismo de valores está registrado na forma e no conteúdo de sua epopeia. Os próprios clérigos que avaliaram as condições da publicação de sua obra estavam envolvidos desse sentido dúbio de valores. Cleonice Berardinelli 4, em um capítulo específico de seu livro, se dedica a analisar os documentos de autorização de publicação e a censura parcial da edição de Tença vem da palavra de tenentia, de tenere, ter, manter, conseguir, segurar. Tença quer dizer renda, recompensa, como uma graça concedida pela autoridade. Disponível em: < 4 BERARDINELLI, Cleonice. De censores a censura. In: Estudos camonianos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Cátedra Padre Antonio Vieira, Instituto Camões, p

15 O documento 5 expedido pelo rei mostra que o mesmo não se mostrou nem um pouco resistente à publicação de Os Lusíadas, só salientou que, se aumentassem os cantos, deveriam ser submetidos à Inquisição. Mas mais importante que ler o posicionamento do rei, é ver o da Inquisição, que poderia censurar e até condenar Camões por ter utilizado deuses pagãos na narrativa. Assim afirma Frei Bartolomeu, responsável por fazer o parecer: Vi por mandado da santa e geral inquisição estes dez cantos Cantos d'oslusíadas de Luiz de Camões [ ] e não achei neles cousa algũa 6 escandalosa, nem contrária a fé e aos bons costumes, somente me pareceo que era necessario advertir os Lectores que o Autor, para encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos portugueses na Índia, usa ũa fi[c]ção de os Deseos Gentios [ ]. Todavia, como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta não pretenda mais que ornar o estilo Poético, não tivemos por inconvininente ir esta fabula dos Deoses da obra, conhecendo-a como tal, e ficando sempre a verdade de nossa sancta fé, que todos os Deoses dos Gentios são Démonios 7. Através da declaração de Frei Bartolomeu, podemos perceber que só era aceitável haver elementos pagãos na narrativa porque era uma necessidade de estética e representação. Mais que isso, porém, a obra de Camões só foi aceita porque o cenário português estava embutido de elementos greco-romanos. Mesmo que os deuses representassem demônios, sua utilização foi aceita porque, nesse momento histórico, era comum uma maior inclinação para as obras da Antiguidade e, ainda mais, a utilização desse recurso estético, segundo o Frei, serviu para demonstrar a dificuldade dos portugueses nas suas viagens às Índias. Para nós, Camões, os utilizou como uma referência a Homero e a Virgílio, para mostrar que mais que conhecer e dominar os clássicos, ele quis superá-los através de uma narrativa nacional, como demonstra no seguinte verso: Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram: Cesse tudo o que a Musa antígua canta, Que outro valor mais alto se alevanta. Assim, Camões mais que comparar os portugueses com os povos antigos ele buscou mostrar a superioridade portuguesa. Berardinelli apresenta como, treze anos mais tarde, o mesmo Frei mudou de 5 Os documentos citados e referenciados aqui foram retirados do livro "Estudos Camonianos", de Cleonice Berardinelli. pois não tivemos acesso ao original. 6 No texto consultado, o acento til estava em cima da letra U, pois, no século XVI, a língua portuguesa não havia adotado a letra M para dar a sonoridade mais nasal. 7 BERARDINELLI, Cleonice. De censores a censura. In: Estudos camonianos. Rio de Janeiro: Nova fronteira: Cátedra Padre Antonio Vieira, Instituto Camões,

16 posicionamento: Vi por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo senhor Arcebispo de Lisboa, Inquisitor Geral destes Reinos, Os Lusíadas de Luís de Camões, com algũmas glosas, o qual livro assim emendado como agora vai, não tem cousa contra a fé e os bons costumes, e pode-se imprimir. E o autor mostrou nele muito engenho e erudição. Com Algũmas glosas, o Frei se refere a algumas mudanças que ele recomendou para a publicação da edição de Segundo Berardinelli não só foi cortado, mas alterado e desvirtuado em muitas passagens, e por motivos ideológicos, porque alguns passos atentavam contra a fé e os bons costumes - ponto de vista ético e religioso - e porque outros eram agressivos aos castelhanos - ponto de vista político 8. A autora defende que essas mudanças aconteceram em consequência do domínio espanhol, tanto na esfera política quanto na religiosa. Assim, ela demonstra como, algumas vezes, a palavra deuses foi substituída por musas, cenas de nudez eram suprimidas, como no episódio de Adamastor, que vê Tétis nua. Onde, em 1572, se dizia Soberbo Castelhano, em 1584 foi substituído por Valente Castelhano, entre outros exemplos. Ocorreu, porém, que, enquanto a censura se mostrava presente em Portugal, na Espanha, durante esse mesmo período foram publicadas três edições em espanhol, as quais tinham poucas alterações, buscando preservar ao máximo a ideia original. Somente em 1594, com o pedido de uma nova publicação, o Frei Manuel Coelho utiliza a edição original. Esse debate sobre por que ora a obra era impressa ora na íntegra, ora censurada, nos serve para refletir como o próprio pensamento da Igreja não saiu ileso ao período denominado Renascentista. Durante toda a Idade Média, os clérigos leram os clássicos de um modo restrito, isso devido à quantidade destruída pelos próprios germanos, como pela dificuldade de se traduzir do grego para o latim. Em diferentes momentos, a Igreja valorizou e condenou diferentes pensadores antigos, como percebemos no caso de Platão e de Aristóteles. Num primeiro momento, o primeiro foi mais lido do que o segundo, havendo uma resistência às ideias de Aristóteles. Posteriormente, porém, seu pensamento foi aceito, mesmo tendo resistências. Não podemos falar de um único pensamento da Igreja, mas de sua complexidade de ora ser influenciada por outros povos (como os árabes), ora de sofrer mudanças junto às transformações da sociedade, reinterpretando os textos a partir do que defendiam e do que tinham acesso. Nesse sentido, podemos até refletir sobre a valorização de Virgílio durante a Idade Média, mesmo sendo pagão e fazendo uso da mitologia clássica para construir a Eneida. Mary Snodgrass 9 discute que na quarta écloga, de Virgílio, o autor previu o nascimento de uma 8 Idem. 9 SNODGRASS, Mary E. Os clássicos romanos. Universidade Carolina do Norte,

17 criança que, durante cuja a vida a humanidade viveria numa Época Áurea, com o intuito de homenagear César Augusto, mas os cristãos interpretaram o verso como se referindo ao nascimento de Cristo. Assim, suas obras foram comparadas com as de Isaías, da bíblia, e ele foi visto como um pagão virtuoso. Isso mostra que a Igreja, em alguns casos, não se mostrou intolerante a tudo o que pertencia ao mundo pagão, mas condenou aquilo que não pôde adaptar ao mundo cristão. Dito isso, é importante salientar que a perspectiva histórica que utilizamos para realizar esse trabalho foi a da História Intelectual. Trata-se de um campo novo na historiografia e que, ainda, tem que delinear mais precisamente os seus limites. Partimos da História Intelectual francesa, cujos historiadores entendem que uma história intelectual pode ter um caráter discursivo (tratando da obra produzida descolada de contextos) e ou contextual (configurações, campos, práticas). Segundo Helenice Rodrigues Silva, a história intelectual é um domínio interdisciplinar que permite vários enfoques, como sobre o contexto, sobre a produção de ideias, sobre os agentes socioprofissionais e sobre as correntes de pensamento. Dessa forma, dialoga como diferentes disciplinas, visando dois polos de análise: [...] um conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual e as características de um momento histórico que impõe formas de percepção, ou seja, modalidades específicas de pensar e agir de uma comunidade intelectual 10. Para realizarmos este trabalho utilizamos duas perspectivas de análise defendidas por Helenice Rodrigues: a dimensão diacrônica (história) e a sincrônica ( os aspectos diferentes de um mesmo conjunto em um mesmo momento de evolução ). Consideramos que essas dimensões de análise e a recepção dos modelos de pensamento são fundamentais em uma pesquisa que busca integrar a obra intelectual e o contexto de produção 11. Camões perpassa as fronteiras da literatura e da história, faz, inclusive, uma interpretação do seu passado, mas o que faz ele se instalar na literatura e não na história? Pode soar estranha essa pergunta, mas o que Camões faz é ao mesmo tempo uma criação ficcional e uma criação real. Para entender melhor essa aproximação e o distanciamento entre o historiador e o escritor, recorreremos a Sandra Pesavento, que tem seu estudo focalizado na perspectiva do imaginário. Para ela, o [...] imaginário é um sistema produtor de ideias e imagens que suporta, na sua feitura, as duas formas de apreensão do mundo: a racional e conceitual, que forma o conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao conhecimento sensivel [ ]. E ainda, [ ] o imaginário é sempre um sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da realidade, sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente SILVA, Helenice R. A história intelectual em Questão. In: LOPES, Marcos A. Lopes (Org.). Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, p Idem, p PESAVENTO, Sandra J. História & literatura: uma velha-nova história. Revista Nuevo Mundo - Mundos Nuevos - Debates, p

18 Segundo a autora, A literatura e a história são narrativas que têm o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Mas, dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está a diferença? A partir de sua posição diante do imaginário, a autora adota o não acontecido, no caso a obra literária, para explicar o que aconteceu. Ela levanta uma questão bastante pertinente: [...] como a literatura, um relato do que poderia ter acontecido, pode ser usado como fonte de algo que aconteceu?. O historiador cria, a partir das fontes, ou seja, ele transforma os vestígios do passado em fonte na medida em que pergunta sobre o passado, e é a partir das respostas que ele explicará como algo teria acontecido 13. A história recorre à literatura como fonte. A primeira pergunta e a segunda responde. Para ser entendido como um trabalho de história, o autor, historiador no caso, deve se basear em sua fonte, ter um método de pesquisa e se aproximar do acontecido. Literatos não têm compromisso com as marcas de veracidade que são utilizadas como prova de algo que aconteceu. Nesse sentido, diz Pesavento: A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca, fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu 14. Dessa forma, a mitologia, a interpretação que Camões faz do passado e dos orientais, assim como outros traços presentes n Os Lusíadas, nos permitiram acessar aspectos do imaginado, do vivido, do sonhado, ou seja, elementos pertinentes à análise histórica. Sobre a metodologia utilizada para trabalhar com uma fonte literária, Antonio Cândido 15 elenca algumas modalidades para estudos sociológicos em literatura, dentre eles destacamos: estudos em que se procura verificar até que medida a obra literária representa a sociedade, em seus vários aspectos. Outro é a relação entre a obra e o público, ou seja, seu destino, aceitação. Um terceiro estudo, também importante, segundo ele, [...] é saber a posição social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade 16. Ainda apresenta um 13 Idem, p Idem, p CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Plubifolha, p Idem. 18

19 estudo que investiga a função política das obras e dos autores, em geral com um intuito ideológico marcado. Renato Moscatelli cita Barthes para afirmar que a leitura ultrapassa o sentido de uma mera decifração de signos linguísticos. O indivíduo, quando lê, dialoga com o que está sendo lido e com as experiências anteriores de leitura ou de vivência. Nesse sentido, o texto que o autor escreve não é um texto pronto e acabado, mas que se completará na medida em que o leitor o desvende: Por isto, o resultado da interpretação textual não seria somente a elucidação das ideias do autor, mas sim o que ele quis dizer 17. Isso nos serve não apenas como metodologia para poder ler e interpretar Camões, mas para compreender como ele lia e interpretava as obras antigas. Ler não é apenas ouvir o que o texto diz, mas também apresentar ao texto uma fala pessoal e interrogativa, pois se está muito mais próximo a um ser humano com que se pode conversar que a um objeto 18. Uma coisa deve, porém, estar clara, qual seja a de que o texto/fonte não fala nada por si. é o leitor/historiador que compõe perguntas para que o outro possa falar. O historiador reconhece a subjetividade presente em sua fonte quando dialoga com ela, pois ele não analisa apenas a obra em si, como também o homem que a escreveu. Moscatelli escreve: [...] é preciso ter em mente que admitir o sujeito do texto é encontrá-lo no próprio texto, e não em nosso pensamento. Nas malhas de sua fala, o autor (literato) impõe sua presença não precisa ser ressuscitado pelo pesquisador. 19 Após estas reflexões teóricas, cabe-nos apresentar uma síntese da obra Os Lusíadas, de forma a orientar o leitor para as discussões que serão feitas mais adiante. A epopeia está dividida em dez cantos, compostos por oitavas e versos decassílabos, sendo formado por rimas ABABABCC. No primeiro canto os deuses fazem o concílio para decidir se permitiriam que os portugueses chegassem às Índias. Depois de postos os argumentos, Júpiter declara que eles chegarão às terras orientais, porém Baco não aceita essa decisão. O papel de Baco é o de impedir a chegada dos portugueses à Índia e o de Vênus é de os proteger. Ao chegarem a Moçambique, os navegantes se conflituam com os mouros, devido às importunações de Baco, mas os portugueses são vitoriosos graças a Vênus. No segundo canto, o rei de Mombaça convida a armada portuguesa a entrar no porto, mas sua finalidade é a de destruí-los traiçoeiramente. Gama pede para dois portugueses investigarem as terras africanas, eles vão e encontram um cristão, que, na verdade, é Baco disfarçado (mas isso eles desconhecem), e se convencem de que as terras eram cristãs. Vasco decide descer às terras e Vênus impede que os barcos dos mouros cheguem ali. Gama descobre a armadilha e agradece à Divina 17 MOSCATELLI, Renato. História intelectual: a problemática da interpretação de textos. In: LOPES, Marcos Antônio (Org.). Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, p Idem, p Idem, ibidem. 19

20 Guarda o milagre. Ao ouvir essas palavras, Vênus vai até o Olimpo reclamar junto a Júpiter a falta de proteção dos portugueses. Júpiter se comove e manda Mercúrio para preparar uma recepção em Melinde aos portugueses e a direcionar Gama sobre o caminho a ser seguido. A armada chega a Melinde e é bem recebida. No terceiro canto, o narrador invoca Calíope para que lhe inspire contar os feitos portugueses. Gama começa a contar, antecipando que o tempo é demasiado curto para os grandes feitos portugueses. Após a descrição da Europa, Gama fala da origem de Portugal e indica sua localização geográfica. Narra desde D. Henrique até D. Fernando, valoriza os reis D. Henrique e D. Afonso. Descreve os conflitos com os mouros, aliança com os espanhóis e a morte de Inês de Castro. No canto quatro, Gama continua a narrar a história de Portugal ao rei de Melinde, desta vez relatando o conflito com os espanhóis, a batalha de Aljubarrota. Além disso apresenta a partida das naus de Portugal e o lamento e a crítica do Velho do Restelo acerca da empreitada marítima. No canto V, Camões corta a narrativa para contar como foi o início da viagem. Assim, Gama conta a partida das naus de Lisboa, que tranquilamente navegaram até o equador. Após isso, começou a sofrer diversas dificuldades meteorológicas. Chegam à Ilha de Santa Helena, onde, a princípio, se acham familiarizados, mas, por fim, entram em conflito com os nativos. Em seguida, no Cabo das Tormentas acontece o episódio do Adamastor, gigante mítico que assusta os portugueses, roga maldições e, no final, depois do enfrentamento com Gama, conta sua história, mostrando sua fraqueza e fragilidade diante do amor. No canto VI, os navegadores partem de Melinde para prosseguir viagem até a Índia, levando a bordo um piloto de Melinde. Baco vai até os mares e invoca os deuses do mar para que impeçam a chegada dos portugueses à Índia. É feito um concílio, Baco, emocionado, convence os deuses dos mares a realizarem a façanha. Desse modo, Netuno manda que Eolo solte os ventos, gerando uma tempestade. Sem previsão dos males que os esperavam, os portugueses contam histórias para que possam evitar o sono, histórias como a dos Doze da Inglaterra. São interrompidos pelos fortes ventos que destruíam tudo. Algumas naus foram afundadas e também mastros quebrados em outras. Diante da situação caótica, Gama pede ajuda à Divina Guarda. Vênus, vendo o perigo por que passam os portugueses, conclui que é uma ação de Baco. Dessa forma, convoca as ninfas para que acalmem os ventos. Quando a tempestade acaba, amanhecendo, via-se o piloto melindano na costa de Calecut. O canto termina com o agradecimento de Gama e uma reflexão de Camões acerca do valor da glória. Podemos observar essas cenas, que acabamos de descrever, no mapa a seguir, que mostra os locais geográficos em que acontecem os episódios da narrativa: 20

21 Figura 2: Mapa localizando o espaço geográfico e a localização da narrativa 20 Através desse mapa podemos visualisar onde os barcos navegavam quando fatos presentes na narrativa aconteciam. A legenda menciona o evento e o mapa apresenta em que ponto da trajeto dessa grande navegação os portugueses, com Vasco da Gama, se encontravam. No canto sete, os portugueses chegam à Índia, e o narrador elogia os portugueses na luta contra os infiéis e exorta as outras nações europeias a seguirem os portugueses. Em busca do rei, alguns portugueses encontram um árabe (Monçaide) que fala espanhol e que se dispõe a dar de comer e beber. Monçaide vai até as naus levando produtos indianos a Gama. Em seguida Vasco da Gama e os nobres portugueses desembarcam e, recebidos pelo Catual, são levados ao palácio de Samorim. Enquanto conversam, Catual e Monçaide vão até as naus portuguesas, são recebidos por Paulo Gama, a quem perguntam o significado das figuras das bandeiras. No canto oito, Paulo Gama continua a explicar os significados das bandeiras. Por ordem do Rei da Índia, os Arúspices fazem sacrifícios porque adivinham o cativeiro e a destruição dos indianos. Baco entra em ação, aparecendo em sonho a um sacerdote árabe, o qual acorda instigando os outros a lutarem contra Gama. Este procura se entender com Samorim, que, após discussão, ordena a Gama que regresse a frota, mostrando o desejo de trocar fazendas europeias por especiarias orientais. Subornado pelos muçulmanos, Catual impede as ordens de Samorim e pede para Gama aproximar a frota para embarcar, com o intuito de destruir. Gama, desconfiado, não aceita a proposta e é preso pelo Catual. Com receio de ser castigado pelo Samorim, Catual apresenta nova proposta a Gama: deixa-o 20 Mapa disponível em: Consultado 03 nov

22 embarcar, mas terá que dar, em troca, fazendas europeias. Gama aceita e retorna à frota, depois de ter entregue as mercadorias que foram pedidas. O canto acaba com as reflexões de Camões sobre o poder do metal. No canto nove, dois portugueses são encarregados de vender mercadorias, mas são detidos em terra, para retardar a partida dos portugueses, e assim serem destruídos pelos mulçumanos que vinham de Meca. Gama é informado disso pelo Monçaide e decide partir, fazendo com que os dois portugueses retornem escondido para as naus, porém isso não acontece. Em troca, prende mercadores indianos e ordena a partida. Por ordem do Samorim, Gama é restituído com as fazendas e os portugueses. Vênus prepara um repouso e uma recompensa aos portugueses, pedindo que seu filho traga as musas para a Ilha dos amores. A ilha é colocada no trajeto da armada com o fim de que os portugueses a encontrassem de qualquer forma. Os portugueses desembarcaram na Ilha e começam os namoricos entre os portugueses e as ninfas. Tétis, a maior, apresentou-se a Vasco da Gama e levou-o para o seu palácio, onde lhe explicou o significado da Ilha dos Amores. Por fim, no canto X, Tétis e as outras ninfas oferecem um banquete aos navegadores. Nesse momento uma ninfa descreve os futuros feitos portugueses. É interrompida pela invocação que Camões faz à Calíope, musa grega da eloquência. Ao findar a invocação, a ninfa continua a descrever. Em seguida Tétis guia Gama até o alto de uma montanha, de onde lhe mostra a máquina do mundo e Gama descobre os segredos do mundo e as futuras conquistas portuguesas. Entre as várias profecias, Tétis apresenta o naufrágio de Camões. Tétis se despede dos portugueses, os quais embarcam para a viagem de regresso, viagem que é calma e não interrompida por nenhum infortúnio até o Tejo. Camões termina o canto lamentando o fim da epopeia. Com este pequeno resumo é possível que o leitor tenha uma vaga orientação sobre a narrativa que é alvo da presente análise. São inúmeros os temas de pesquisa que podem ser desenvolvidos utilizando essa epopeia como fonte. Devido as limitações temporais e espaciais que temos que definir para que o trabalho se conclua, centramo-nos nas questões que mais nos chamaram a atenção, as quais nos pareceram mais relevantes para a análise histórica. Sem mais prolongamentos, apresentamos a estrutura deste trabalho, dividido em três partes: capítulo 1: A História de Portugal: do Movimento Intelectual às Grandes Navegações ; capítulo 2: O Pensamento Medieval: uma herança da Antiguidade ; e, por último, o capítulo 3: A Influência da Antiguidade Clássica n'os Lusíadas". No primeiro capítulo procuraremos contextualizar o momento em que vivia Camões, acerca do paradigma do pensamento renascentista defendido pelos intelectuais do século XVI, bem como do processo das grandes navegações. Discutiremos alguns dados básicos sobre dois navegadores que foram fundamentais no processo de navegação e, em especial, Vasco da Gama, que será o grande herói da epopeia. Junto a isso apresentamos uma breve discussão sobre a chamada escola de Sagres. Nesse 22

23 mesmo capítulo apresentaremos as resistências do portugueses frente às navegações, bem como as condições dessas viagens. Em seguida, faremos uma discussão a respeito da visão que Camões tinha da história portuguesa e dos orientais e, por último, a Ilha dos Amores, constituída como recompensa aos empreendimentos marítimos dos portugueses. No segundo capítulo buscaremos mostrar como o pensamento da Antiguidade permeou toda a Idade Média e não apenas o renascimento do século XVI. Assim será perceptível a grande importância de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino para a aceitação do pensamento Antigo na Idade Média e buscaremos mostrar a influência desses pensadores, direta ou indiretamente, na epopeia de Camões. Além dos filósofos, o poeta lusitano teve influência dos romances de cavalaria, e dos mitos sobre monstros que circulavam no período. Assim, procuraremos identificar como a influência do pensamento medieval permeou bastante tempo o pensamento renascentista. No último capítulo procuraremos identificar a influência, principalmente, de Homero e Virgílio n'os Lusíadas, não apenas na estrutura como no próprio conteúdo. Através dessa análise será possível perceber a leitura que Camões faz das obras clássicas, reinterpretando a obra a partir do seu contexto e ressignificando alguns valores presentes na narrativa. Esse trabalho é fruto de dois anos de pesquisa, primeiramente com voluntária e depois como bolsista. A paixão pela poesias e pelas artes em geral sempre foi muito presente, desta forma procurava uma problema que possibilitasse consultar esse tipo específico de fonte. Entre muitas conversas informais, um amigo apresentou a possibilidade de pesquisar as navegações da Antiguidade e da Modernidade, comparando-as e tomando como base Homero e Camões. A ideia pareceu muito interessante e comecei a pesquisar. Mas a pesquisa tomou rumos diferentes do que se pretendia em um primeiro momento. Isto devido a participação do grupo História Intelectual que contribuiu muito para pensar os problemas possíveis a serem levantados com as fontes da minha pesquisa. Buscou-se analisar Camões enquanto um intelectual que formava ideias na sociedade portuguesa, ora como legitimador de alguns processos e ora como crítico a esses processos. Através desta perspectiva se pode analisar os caminhos que alguns textos da Antiguidade Clássica chegou até o século XVI, percebendo a interpretação de diferentes períodos. Compreendendo que não se trata de um movimento harmonioso de somente recepção do texto, mas com intervenção e reelaboração. Pois consideramos que Camões não foi apenas o resultado de um processo em movimento, mas um agente deste movimento que teve um papel ímpar em Portugal. O leitor não se arrependerá de ler esta extensa monografia, que, apesar de não findar com as discussões em torno do pensamento de Camões, contribuiu muito para refletirmos sobre o papel desse intelectual na sociedade em que vivia. Trata-se de pensador que não construiu uma obra literária para fugir da sua realidade, mas para registrar seu presente e reinterpretar o seu passado. 23

24 CAPÍTULO I A HISTÓRIA DE PORTUGAL: DO MOVIMENTO INTELECTUAL ÀS GRANDES NAVEGAÇÕES Dos heróis que cantaste, que restou senão a melodia do teu canto? As armas em ferrugem se desfazem, os barões nos jazigos dizem nada. É teu verso, teu rude e teu suave balanço de consoantes e vogais, teu ritmo de oceano sofreado que os lembra ainda e sempre lembrará. Tu és a história que narraste, não o simples narrador. Carlos Drummond de Andrade 1 A CONSTRUÇÃO DO RENASCIMENTO E O DEBATE HISTORIOGRÁFICO Segundo autores como Sevcenko 21 e Valverde 22, o Renascimento teve início no século XIII e perdurou até o século XVI, tendo seu maior resplendor nos últimos cinquenta anos. Há, porém, autores que refutam isso, por exemplo, Delumeau 23, que considera que o próprio termo Renascimento foi uma invenção dos italianos, que buscavam legitimar seu movimento negando o passado. Por isso a oposição declarada entre a "idade das trevas" e a "idade da luz". Segundo ele, o termo "renascimento" não é suficiente para compreender a arte românica, a arte gótica, nem para compreender Dante. Assim, critica a separação da Idade Média do Renascimento. Segundo Delumeau, a Idade Média não abandonou a Antiguidade, pois, em suas palavras: As Obras de Arte, por seu lado, provam que a Idade Média não tinha esquecido tanto, como durante muito tempo se julgou, certos temas e assuntos antigos. [...] A própria Arte Gótica mergulhou raízes no tesouro da Antiguidade. No campanário de Giotto, em Florença, os deuses planetários sentam-se, sob o alto Patrocínio dos profetas e das Sibilas, na mesma linha que as Virtudes, as Ciências e os Sacramentos 24. Delumeau defende que há uma continuidade na História, pois a Antiguidade Clássica se manteve presente na Idade Média, uma vez que os humanistas bebiam nas obras medievais a 21 SEVCENCO, Nicolau. O Renascimento. 5. ed. São Paulo: Atual, p VALVERDE, Antônio J. R. O homem do Renascimento. Biblioteca Digital. Disponível em: < fgv.br/dspace/handle/10438/2881>. Acesso em: 21 out. 2012, p DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Estampa: Lisboa, p Idem, p

25 referência Antiga. Delumeau apresenta o Renascimento como uma evolução tecnológica que permitiu a criação do relógio e da imprensa, considera que o Renascimento foi um progresso técnico, espiritual e material. E, ainda, o define: Significa (e não pode significar outra coisa) a promoção do Ocidente numa época em que a civilização da Europa ultrapassou, de modo decisivo, as civilizações que lhe eram paralelas 25. Para justificar o posicionamento defendido aqui sobre o Renascimento, já indicado por Delumeau, faremos referência ao debate historiográfico a partir do balanço feito por Ana Carolina de Almeida 26, que analisa as diversas percepções que se construíram em torno do fim da Idade Média. A autora discute que foi no contexto do humanismo que, pela primeira vez, Petrarca se referiu à Idade Média como uma época intermediária. Dois sentidos foram dados a essa concepção. Primeiro: uma preocupação filológica, segundo a qual os humanistas acusavam os medievais de terem feito mudanças significativas ao latim e que interpretaram como negativo. Segundo: uma preocupação religiosa, pois alguns críticos do papado afirmavam que a Igreja Medieval tinha deturpado a mensagem de Cristo por apego a valores mundanos e materiais. Nesses casos consideram que a Idade Média havia se estabelecido durante 476 até o século XV. Nesse sentido, começaram as interpretações de que a Idade Média era um período sombrio da história, permanecendo essa concepção até a Revolução Francesa. A partir do século XIX, com as contribuições de Michelet, passou-se a pensar a Idade Média como um passado nacional, marcando assim um período em que não houve Estado. Almeida 27 aponta que somente a partir do século XX, com a História Social, as contribuições de Bloch e o diálogo com outras ciências sociais, é que se pôde repensar o medievo. O livro "Os Reis Taumaturgos" foi um precursor nesse sentido, pois, ao contar a história do milagre da cura das escrófulas, mostra que o popular não diminuíra perante as instituições. A autora cita Christian Amalvi para mostrar que o livro Os Reis Taumaturgos esboçava a História das Mentalidades e, junto à História Medieval, estabelecia um novo paradigma para pensar a Cultura, introduzido pela fundação da Revista dos Annales, por Lucien Febvre e Marc Bloch. Assim, a própria cronologia da Idade Média seria revista a partir do conceito de longa duração de Fernand Braudel. Através das contribuições desses autores e dessa perspectiva teórica, novos problemas puderam ser levantados para debater a Idade Média. Assim, autores como Le Goff não apenas se basearam nas contribuições dos Annales como também promoveram outras perspectivas para a 25 Idem, p ALMEIDA, Ana C. Pensando o fim da Idade Média: a Longa Idade Média de Le Goff e a Colonização da América de Baschet. Revista Tempo de Conquista. Disponível em: < RTC7/ANACAROLINAALMEIDA.pdf>. Acesso em: 21 out Idem. 25

26 pesquisa, pautando-se na multiplicidade de objetos. Assim, com novos objetos e aliados ao debate sobre temporalidade, Le Goff cunhou o conceito de Longa Idade Média, que se estabeleceria a partir de Fernand Braudel, ao discutir as relações econômicas do século XV ao XVIII, percebe uma ruptura no período medieval, baseando-se no conceito de economia-mundo. Embora Braudel utilize esse conceito, ele defende, com base no marxismo, que o capitalismo começou no século XIII, mas aponta que determinados temas ligados às mentalidades devem ser vistos através da longa duração, uma vez que as modificações mentais são mais lentas que as econômicas. Dessa forma, para os marxistas 28, o fim da Idade Média deveria ser relacionado com o estabelecimento do capitalismo. Um dos expoentes dessa perspectiva é Perry Anderson, que considerava o fim da Idade Média relacionado ao surgimento do Estado Absolutista. A Nova História, surgida a partir da década de 70, foi responsável por uma grande mudança da delimitação do período Idade Média. Le Goff, com o conceito de Longa Idade Média nos anos 1980, defendeu a ideia de que o Renascimento do século XVI representou apenas mais um dos renascimentos pelos quais passou a Idade Média desde o Renascimento Carolíngio. Para esse historiador, os grandes conhecimentos desenvolvidos no século XVI faziam parte da Idade Média. Assim, criticou visões pejorativas a respeito desse período. Le Goff afirma que, para a Longa Idade Média ter um fim: [...] é preciso esperar o fim do século XVIII para que a ruptura se produza: a revolução industrial na Inglaterra, depois a Revolução Francesa nos domínios político, social e mental trancam com chave o fim do período medieval. A Idade Média se situa entre uma lenta mutação, que judiciosamente de algum tempo para cá se chama de Antigüidade tardia, denominação melhor do que Alta Idade Média (aquela que começa mais tarde, por volta dos séculos de VI a VIII), e uma revolução no fim do século XVIII. Entretanto, como a história conserva sempre uma parte de continuidade, fragmentos da Idade Média sobrevivem durante o século XIX 29. Assim Le Goff, junto a outros historiadores, tais como Michel Pastoureau, Alain Guerreau, Jérôme Baschet e Jean-Claude Schmitt, ampliaram o debate do período a partir da perspectiva de Longa Idade Média. Almeida aponta Baschet como um dos pesquisadores que mais foi influenciado pelo conceito de Le Goff. Baschet adotou o paradigma de Guerreau, sustentando a posição dominante da Igreja e a relação de dominium como marcas da civilização feudal. Esse autor utilizou dessas perspectivas para pensar a colonização no México. O próprio Le Goff colaborou com as argumentações de Baschet: 28 Vale salientar que alguns marxistas investigam a Idade Média com o propósito de perceber o surgimento do capitalismo, desvalorizando e não estudando a dinâmica social por ela própria, mas apenas colocando-a como uma etapa intermediária para o estabelecimento do capitalismo. O resultado disso é uma visão limitada, que acaba reproduzindo a Idade Média como um período intermediário, como fez Petrarca. 29 Idem. 26

27 [ ] sejam quais forem as diferenças entre a Europa medieval e a América colonial do século XVI, o essencial do feudalismo medieval volta a ser encontrado na América: o papel dominante e estruturador da Igreja; o equilíbrio da tensão entre monarquia e aristocracia modifica-se, sem que se rompa, no entanto, a lógica feudal; as atividades cada vez mais importantes dos homens de negócios, comprometidos com o comércio atlântico ou com a exploração dos recursos minerais e agrícolas do mundo colonial, permanecem dentro dos marcos corporativos e monopolistas tradicionais, e estes homens seguem orientado seus ganhos para a propriedade da terra e a aquisição do estatuo de nobre. No entanto, Baschet aceitaria sem emendas a expressão feudalismo tardio e dependente, dado que ela mantém, mesmo admitindo certas especificidades do feudalismo colonial americano, o essencial da referência ao feudalismo, e dado que se trata de um mundo cuja lógica é completamente alheia à nossa 30. Para o autor, as navegações em busca de uma nova rota para as Índias e o fim da Reconquista e a Conquista são um prolongamento das estruturas medievais na América. Considera que o objetivo da conquista era a questão material (ouro) e o outro era espiritual (evangelização), ou seja, a glória do rei (objetivo econômico-político) e a glória de Deus (objetivo religioso). Assim, para Baschet, esses valores e essas visões de mundo são substancialmente medievais. Por isso afirma: Defender-se-á, aqui, a idéia de que a conquista e a colonização não são ações de uma sociedade européia liberada do obscurantismo e do imobilismo medievais e já inseridas na modernidade. São muito mais o resultado de uma dinâmica de crescimento e de expansão, de uma lenta acumulação de progressos técnicos e intelectuais, próprios aos séculos medievais e dos quais o momento mais intenso toma forma por volta do ano mil 31. Otto Carpeaux 32 escreveu um manuscrito em que problematiza o conceito de Renascimento. Nesse manuscrito, o autor critica a ideia de que o Renascimento seja um período histórico determinado, em que sujeitos da Modernidade retomam, de forma inédita, a filosofia e a arte da Antiguidade Clássica. Para o autor a influência dos pensadores antigos não é uma exclusividade do Renascimento do século XVI, pois, em diversos momentos da história, uma sociedade influenciou a outra, da forma que a Antiguidade Arcaica influenciou a Clássica, por exemplo, da mesma forma que a Clássica influenciou a Idade Média e, ainda, da mesma forma que ambas influenciaram o Renascimento. Dessa forma, Carpeaux defende a perspectiva de Delumeau, pois, para ele, a diferença consiste na maneira como as obras (antigas) eram lidas e quais autores eram valorizados. Platão, por exemplo, foi um sujeito bastante lido nos primeiros séculos da Idade Média, seja através de suas obras ou de outros autores como Santo Agostinho. A partir das contribuições de Santo Agostinho e dos 30 Idem. 31 Idem. 32 Otto Carpeaux escreveu um livro de quatros volumes nomeado História da Literatura Ocidental. Cada um dos volumes é dedicado a um determinado período histórico. Seu objetivo é delinear o contexto do texto literário, autor e suas repercussões. Esta pesquisa deu maior atenção ao volume I, que trata do período Antigo ao Medieval. Na edição publicada pelo Senado Nacional, em 2008, e na segunda edição, junto ao primeiro volume foi publicado um manuscrito intitulado "O Renascimento". 27

28 neoplatônicos, foi possível fazer dialogar o pensamento pagão com o Cristão. Já as ideias de Aristóteles, mesmo cristianizadas, demoraram mais para serem aceitas, uma vez que elas se mostravam contrárias ao que os Cristãos defendiam. Assim podemos afirmar que, no Ocidente medieval, se sucederam vários renascimentos: renascimento Carolíngio (século VIII-IX), renascimento do século XII, e não apenas aquele do século XVI. Entendemos que o Renascimento do século XVI não foi o único a olhar para o passado e a reinterpretá-lo, mas, segundo Beatriz Domingues 33, [...] ainda que seja possível falar em 'Renascimentos' anteriores, durante os séculos medievais o sentimento de renascer que o século XVI presenciou adquiriu uma forma e uma força singulares. A autora se refere à proporção e à força que o movimento alcançou, ganhando formato no mundo todo, mas cada qual com sua especificidade. José Carlos Reis 34 cita Pomiam para mostrar que o renascentista buscou um retorno à origem mítica. Para o europeu do século XVI, afirma ele, o presente não tem sentido próprio, mas, sim, passa a ter significado se for ao encontro dos tempos clássicos da Antiguidade. Dessa forma, em alguns momentos se voltava ao passado e, em outros, ao futuro. Para Pomiam, há uma percepção mítica do tempo na forma do ciclo, uma linearidade que varia, uma irreversibilidade que descende e ascende. A partir dessas referências podemos refletir sobre quais autores e de que maneira eram lidos e interpretados na Idade Média, e como alguns, e não outros, passaram a ser lidos no Renascimento. Segundo Roger Chartier: As obras - mesmo as maiores, ou, sobretudo, as maiores - não têm sentido estático, universal e fixo. Elas estão investidas de significações plurais e móveis, que se constroem no encontro de uma posição com uma recepção. Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos dependem das competências ou das expectativas dos diferentes públicos que delas se apropriam. [...] todavia, a recepção também inventa, desloca e distorce 35. Com isso se entende que a leitura e sua interpretação não têm um sentido estático com a história e, ainda, que cada sociedade se apropria dos livros e estabelece uma interpretação compatível com a sociedade em que o sujeito está inserido, pois,segundo Foucault 36, A produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório [...]. Desta forma é possível compreender uma sociedade a partir dos livros, discursos, leituras que ela constrói e a que ela tem acesso. 33 DOMINGUES, Beatriz H. O medieval e o moderno no mundo ibérico e ibero-americano. Revista Estudos Históricos, vol. 10, nº 20 (1997). 34 REIS, José C. Tempo, história e evasão. Campinas, SP: Papiros, CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília, DF: Editora da UnB, p FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, p

29 Durante a Idade Média, os pensadores mais lidos eram aqueles que legitimavam o pensamento da Igreja. Podemos citar entre eles: Platão, Josefo, Santo Agostinho, Ptolomeu, etc. Eram autores que foram interpretados sob um viés cristão. Dessa forma, podemos exemplificar isso através de dois autores: Ptolomeu e Aristarco de Samos. O primeiro defendia a teoria geocêntrica (Terra no centro do universo) e o segundo a heliocêntrica (Sol no centro do universo). A teoria mais lida e que era legítima era a de Ptolomeu, pois dava maior importância à terra, o que condizia com escritos bíblicos que evidenciavam sua perfeição enquanto obra divina. Afirmar que o Sol estava no centro do universo era algo totalmente contestatório, pois se trata de considerar que a Terra não é perfeita e nem autossuficiente como previam os cristãos, o que resultaria em um conflito na sociedade, pois os cristãos entendiam o mundo e sua criação, como: Deus criou todas as coisas [ ] para manifestar a glória e para comunicar sua glória. Pois a única razão da Criação de Deus é o seu amor e sua bondade. 37 Nesse sentido, qualquer questionamento levantado às sagradas escrituras significaria uma crítica direta a Deus. Como poderiam criticar um Deus glorioso, que criou o mundo para manifestar sua glória perante aos homens? Era um desafio muito grande. Durante muito tempo se resistiu questionar, por medo de descobrir que Deus não é um ser tão glorioso e perfeito, mas também por causa de uma instituição que procurava manter seu poderio. A escolha de valorização e a exclusão de determinados autores durante a Idade Média se dá pelos fatores políticos, ideológicos e materiais (acesso à obra, tradutores do grego, etc.). Desse modo, podemos compreender que autores antigos já eram lidos na Idade Média, mas sob uma interpretação condizente com o modo de vida cristão dos leitores. Dessa forma, valorizavam sempre o divino em relação ao humano. Essa relação será invertida a partir do humanismo, pois novos olhares vão ser lançados para Antiguidade, ou seja, um olhar que visava o humano em relação ao divino, um olhar mais poético e idealizado, mas mantendo traços medievalistas, principalmente no cerne da discussão de fé e razão. É nesse embate de ideias e de sujeitos que se encontra o autor aqui estudado. Sua obra é fruto de um processo heterogêneo e questionador em relação ao mundo. Sua obra manifesta o sacro e o pagão, a razão e a fé, o desejo de ir para o mar (representado por Vasco da Gama e o pensamento moderno) e o desejo de permanecer em terra (representado pelo Velho do Restelo e o pensamento medieval). Segundo Antônio Valverde, em seu texto O Homem do Renascimento, O Renascimento não constituiu um retorno à Antiguidade, mas uma identificação com ideais favoráveis ao 37 O trecho de São Boaventura foi retirado de um texto nomeado "O mundo foi criado pela glória de Deus". Disponível em: < Acesso em: 23 out

30 desenvolvimento burguês 38, o que confirma o seu desenvolvimento liderado por um grupo específico em busca de espaço. Sevcenko, no seu livro O Renascimento 39, aponta diversos fatores para as mudanças sociais da Baixa Idade Média na Europa. Uma das mudanças significativas foi o ressurgimento das cidades e do comércio, ressurgimento a partir do qual se estabeleceram contatos com o Oriente, permitindo um fluxo de produtos, especiarias e, sobretudo, um novo estilo de vida para a Europa. Assim, as cidades passaram a exercer poder sobre o campo. A nova camada de mercadores enriquecidos buscava conquistar um poder político e um prestígio social. Sevcenko aponta que as novas circunstâncias impuseram aos homens que alterassem suas atitudes com relação ao destino, sociedade, natureza. Houve um movimento com o fim de dinamizar os estudos tradicionais baseados nos studia humanitatis, quer dizer, estudos humanistas, que incluíam a poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloquência. Esses estudos eram indissociáveis da aprendizagem e do domínio das línguas clássicas. Assim, eram guiados por textos de autores da Antiguidade. Era a tentativa de abolir a tradição intelectual medieval. Novos valores eram inseridos, valores que exaltavam o indivíduo, feitos históricos, a liberdade de atuação e a participação da vida das cidades. O renascimento passa de um movimento que tem início no interior da universidade (dentro da própria estrutura medieval) para um movimento que alcança todo aquele que critica a sua sociedade. Iniciou-se nas cidades italianas e avança para as demais cidades da Europa, partindo, assim, para um caráter universal, mas mantendo a especificidade de cada região ou país. Não podemos interpretar que o renascimento do século XVI foi um movimento uniforme. Em Portugal e Espanha o renascimento teve um caráter bastante específico em decorrência da sua relação social com outros povos, como muçulmanos, judeus e cristãos. Segundo Beatriz Domingues 40, a região Ibérica foi a primeira a acessar e interpretar Aristóteles devido à influência dos árabes. Assim, Portugal não só adotou elementos neoplatônicos (representado pelos poetas), como adotou elementos de Aristóteles e de Tomas de Aquino (navegações). Além da concepção de uma Longa Idade Média, há a concepção de uma Modernidade Medieval. Padre Vas, citado por Beatriz Helena Domingues 41, considera uma modernidade cristãracional nos tempos medievais, por ter colocado perguntas tão racionais à teologia que não permitiu que esta respondesse. Assim afirma Domingues: 38 VALVERDE, Antônio J. R. O homem do Renascimento. Biblioteca Digital. Disponível em: < fgv.br/dspace/handle/10438/2881>. Acesso em: 21 out. 2012, p SEVCENKO, Nicolau. O renascimento. 5. ed. São Paulo: Atual, DOMINGUES, Beatriz H. O medieval e o moderno no mundo ibérico e ibero-americano. Revista Estudos Históricos, vol. 10, nº 20 (1997). 41 DOMINGUES, Beatriz H. O medieval e o moderno no mundo ibérico e ibero-americano. Revista Estudos Históricos, vol. 10, nº 20 (1997). 30

31 No seu sentido mais amplo e profundo, a idéia de modernidade expressaria a experiência filosófica do tempo: a autoridade do tempo presente para qualificar ou desqualificar o passado. Nesse sentido, a primeira manifestação de modernidade na história foi a que ocorreu no mundo grego com o nascimento da filosofia antiga, quando se fez a primeira leitura racional do mito 42. Assim, a modernidade, para Vaz, não está ligada a um tempo histórico específico e determinado, mas a uma etapa de consciência filosófica. Portugal e Espanha quiseram manter, ainda que renovada, uma imagem medieval do mundo, onde se buscou mais renová-la que substituí-la. Assim, a região ibérica procurou sintetizar uma perspectiva aristótelico-tomista em um momento em que esse pensamento recebia inúmeras críticas. E, ainda, mesmo que renovando-se, essa região buscou manter uma escolástica medieval. Assim afirma Beatriz Domingues 43 : A opção pela atualização da síntese aristotélico-tomista que então se efetuava implicava manter a filosofia natural e a astronomia com o status que haviam possuído durante a Idade Média: o de disciplinas auxiliares da teologia. Isso não impediu que se encontrassem lá excelentes cientistas, como não impediu que se identificassem representantes do individualismo moderno. A grande diferença em relação aos demais contextos é que a sociedade como um todo teve uma resistência muito maior a incorporar a nova racionalidade (da ciência e/ou da consciência) porque já havia instituído (ou remodelado) sua própria racionalidade. Eles elaboraram uma racionalidade antes das outras sociedades e isso fez com que a racionalidade escolástica fosse resistente à racionalidade da ciência. Justamente essa perspectiva aristotélico-tomista adotada pelos países ibéricos influenciou a cultura ocidental a pensar diversas ciências. Ainda sobre a especificidade do Renascimento em Portugal, afirma Sevcenko 44 : Em Portugal, a introdução dos primeiros elementos da cultura renascentista coincide com o otimismo das conquistas mais promissoras em seu processo de expansão atlântica do século XV. [...] A figura-chave do humanismo português foi Francisco Sá de Miranda. Após alguns anos de permanência na Itália, trouxe para sua pátria as preocupações dos poetas italianos. [...] Mas o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores escritores de todos os tempos foi Luiz Vaz de Camões ( ), autor da célebre epopeia das conquistas marítimas portuguesas Os Lusíadas. Dotado de grande saber humanístico e capaz de um domínio prodigioso sobre seu idioma, Camões comporia uma obra de inigualável grandeza e sabor poético: ao mesmo tempo que louvava os feitos de seu país, percebia já as calamitosas conseqüências de sua ambição delirante e desmedida. Sevcenko deixa claro que o movimento renascentista esteve, em grande parte, ligado ao expansionismo marítimo. Camões tem um papel ímpar, pois, além de se tratar de um poeta 42 Ibidem, p Ibidem, p SEVCENKO, Nicolau. O renascimento. 5. ed. São Paulo: Atual, p

32 renascentista preocupado com os valores católicos e clássicos, seu enredo consiste na própria navegação. Sevcenko reconhece o papel fundamental que Camões teve em seu tempo, tanto para com o movimento humanístico, quanto para a formação da língua portuguesa. O Renascimento, além de um movimento social, era um movimento intelectual que trazia para os livros novos sujeitos, novas maneiras de ver e de interpretar o mundo, mas isso não significa uma ruptura drástica em relação ao pensamento medieval. Ao contrário, embora se desenvolvesse um aspecto crítico no Renascimento, as pessoas que compunham o movimento não negavam a fé cristã, pois eles adaptaram elementos dos cristãos e pagãos. Segundo Valverde, os renascentistas preocuparam-se em separar mito e história. Isso significa que não negavam a fé cristã, apenas não a reconheciam na sua verdade histórica. Ainda, segundo ele: Se os homens do Renascimento trataram os pensadores e o pensamento da Antigüidade com autonomia, o fizeram da perspectiva de herdeiros da cultura cristã, que conheciam, sobremaneira. Conseqüentemente, é inegável que o entendimento dos problemas clássicos da filosofia e as questões emergentes, com que confrontaram, tiveram soluções aos moldes da tradição, como decorrência do desenvolvimento da cultura cristã. A atitude do Renascimento, para com a Antigüidade e o cristianismo, baseia-se na procura de uma base comum entre ambos. A configuração do conflito é sugerida nos embates entre o dogma e o espírito crítico, entre fé e conhecimento racional. A relação entre a filosofia cristã medieval e a Antigüidade do ponto de vista do filósofo renascentista sempre foi dogmática 45 Era o manifesto do dualismo entre a fé e a crítica, o homem e deus. Ao mesmo tempo, é um dualismo que se manifesta nas produções artísticas e intelectuais desse tempo, dando a entender que os processos históricos estão permeados de laços que se destroem e se reconstroem ao mesmo tempo. Com esses elementos é perceptível que a filosofia greco-romana e a judaico-cristã não se contradizem para os renascentistas, ao contrário, esse sincronismo é que fundamenta o pensamento renascentista, de certa maneira representado pelas figuras de Sócrates e de Jesus, que formaram o paradigma moral do Renascimento. Essas duas filosofias não contradiziam os renascentistas e, em alguns momentos, nem a Igreja, pois, embora houvesse um controle da produção intelectual, muitas obras enriquecidas de elementos pagãos não foram censuradas, podendo-se apresentar como exemplo magno a própria epopeia aqui estudada. A questão a ser problematizada é a de que os intelectuais renascentistas não renasciam as obras. Eles reinterpretavam, reescreviam, se deixavam influenciar, mas construíam sua obra sob as influências do seu tempo, pois, por mais que se tente negar a realidade histórico-social em que vivemos, ela está intrinsecamente ligada à maneira como pensamos. Dados os fatos, compreendemos 45 VALVERDE, Antônio J. R. O homem do Renascimento. Biblioteca Digital. Disponível em: < digital.fgv.br/dspace/handle/10438/2881>. Acesso em: 21 out

33 que o período no qual Camões viveu foi um momento de ruptura e de continuidade. Foi de ruptura porque deixou de ler alguns autores em nome de outros e foi de continuidade porque isso não significou algo novo, pois em todos os períodos da humanidade se teve acesso a obras de diferentes tempos. O artigo de Adriana Silva intitulado A presença da mitologia em Os Lusíadas: no concílio dos deuses procura discutir a inserção da mitologia em um contexto católico. Segundo ela, na obra os deuses aparecem como responsáveis pelas mudanças históricas, mas isso não contradiz a fé católica, mas dá veracidade e beleza às ações 46. De forma breve, discute que Camões é resultado das mudanças do seu tempo, ou seja, do Renascimento, mas não questiona de que forma ele se apropriou de elementos ditos renascentistas e nem dos da Antiguidade, dando a entender que tudo o que fosse renascentista era homogêneo e/ou uma cópia da Antiguidade, questões que discutiremos mais adiante, pois compreendemos que não se pode resgatar o passado. 2 AS GRANDES NAVEGAÇÕES: os navegadores e a escola de Sagres A história da exploração marítima é muito mais antiga do que costumamos pensar, pois ela teve início com a necessidade humana de busca por um clima estável, território fértil, seguro, alimentos abundantes e, mais que isso, segundo um livro norueguês de citado por Felipe Armesto: [...] um dos motivos é a fama, outro a curiosidade e um terceiro a busca de riquezas". Os vikings foram os primeiros povos a chegar à América (aproximadamente em 1000 d.c), segundo Armesto 48 : O novo mundo teria sido avistado pela primeira vez por um aventureiro que tentava seguir o pai à Groelândia e passou além dela. Ele afirma, ainda, que era natural os nórdicos atravessarem o Atlântico, pois há uma série de correntes e ventos que direcionam a Noruega à Terra Nova. Para alguns historiadores, a História da América, da Oceania, ou seja, dos continentes que estão ao sul do globo, começa a partir das conquistas europeias do século XV. Isso significa que alguns pesquisadores se detêm dentro de uma perspectiva eurocentrista, que vê o nativo a partir da colonização e não a partir da sua própria organização (anterior a própria colonização). Esta pesquisa não reproduz esse modelo de pensamento, porém não será investigada a sociedade africana antes da chegada dos portugueses, pois não é este o objetivo do trabalho, mas, sim, o contrário, buscar 46 SILVA, Adriana e col. A presença da mitologia em Os Lusíadas: no concílio dos deuses. Lins-SP, 2009.p ARMESTO, Felipe F. Os desbravadores: uma história mundial da exploração da terra. São Paulo: Companhia das Letras, p Idem, p

34 compreender o imaginário, o discurso e até a justificativa da colonização construída pelos intelectuais portugueses. Talvez, para algumas pessoas, seja muito comum pensar que a história da tecnologia esteja submetida à história progressista ou evolucionista, ou seja, uma história que considere o capitalismo como o sistema ideal. Dessa forma, podem interpretar que essa investigação, em torno dos descobrimentos científicos e da própria tecnologia, seja uma história elitista (ou seja, acabam não mencionando os avanços tecnológicos de cada sociedade por acreditarem estar contribuindo com uma história que idealiza o capitalismo). Mesmo assim, contudo, ao desconsiderar as navegações dos fenícios, dos celtas, dos vikings não é também privilegiar a história portuguesa? Com isso se quer desconstruir a ideia de que os espanhóis e os portugueses foram os primeiros a navegar pelo Atlântico e/ou navegar na América e, mais que isso, afirmar que já havia habitantes nativos seja na América, na África ou na Oceania. A grande questão, contudo, é por que somente a partir do século XV se firma o conceito de que a América foi descoberta"? Com toda a certeza é o cunho ideológico da exploração marítima. Tanto os portugueses como espanhóis se apresentaram enquanto soberanos nos lugares a que eles chegavam e procuravam impor a cultura europeia aos nativos, tanto aos indígenas da América quanto os mouros na África, com fim de dominar ou destruir os povos em busca de interesses políticos, religiosos e econômicos. Edmundo O'Gorman procura mapear essas lendas que perpassam a explorações marítimas no Novo Mundo. Iniciou sua discussão com Bartolomeu de Las Casas, que teve um papel significativo nesse processo, pois afirmou que um piloto desconhecido teria dado informações a Colombo de uma terra nunca vista, cuja embarcação naufragou nessas terras em uma tempestade. Além disso, Las Casas interpretou a chegada de Colombo na América como um cumprimento do designo divino, realizado por um homem escolhido por Deus, para levar a salvação àqueles que desconheciam a luz divina. Em seguida O' Gorman aponta que Gonzalo Fernández de Oviedo foi o primeiro a mencionar a viagem como "descobrimento". E que houve um conflito grande entre os intelectuais da época por uns atribuírem a fama a Colombo e outros ao piloto desconhecido. Para Beaumont, a empresa de Colombo tinha dois objetivos: descobrir um continente desconhecido e, se não encontrasse, chegar à Ásia por uma nova rota. Robertson vê a viagem de Colombo como uma façanha do progresso científico da época em que a viagem se dá, afirmando que, no final do século XV, o grande anseio da Europa era abrir um novo caminho marítimo para o Oriente. Os europeus, durante muito tempo, viram a Índia como um lugar que possuía diversas riquezas que poderiam ser exploradas, uma vez que os produtos existentes lá não existiam na Europa. Eram eles: gengibre, canela, pimenta, açúcar, pedras preciosas, etc. Assim, viajavam para o continente asiático com o fim de estabelecer relações comerciais. A Itália, durante algum tempo, dominou o caminho da Europa para Ásia, mas, a partir do século XV, da conquista de Constantinopla pelos 34

35 turcos, esse caminho foi bloqueado. Assim, a busca de um caminho alternativo para se chegar à Índia se tornou uma necessidade. O descobrimento da nova rota pelo Atlântico, por Gama, em 1497, encadeou diversos questionamentos acerca do mundo, pois se acreditava que, em primeiro lugar, o Atlântico era muito perigoso, pois nele habitariam monstros marítimos; segundo, porque até então se acreditava que não existiam terras ao sul do continente. Assim, a nova rota fez de Portugal uma nova potência, pois, além de dominar esse caminho, ela quebra a barreira das navegações pelo Atlântico. Para Billini: As viagens de descobrimento e colonização foram os mais importantes acontecimentos em Portugal, nos séculos XV e XVI, condicionando, em maior ou menor grau, grande parte dos aspectos culturais, econômicos e sociais lá existentes. A expansão marítima constituiu de diversas maneiras, a dimensão moderna de Portugal no período, ocasionando a formação de um novo quadro da configuração do mundo, o crescimento do grande comércio e das cidades e o desenvolvimento de um olhar empírico em certas áreas do saber 49. Não só Portugal, mas o mundo sofreu uma nova configuração cultural, social, política e econômica a partir dos descobrimentos. Nosso interesse aqui é o de demonstrar como esse processo foi, ao mesmo tempo, de ruptura e de continuidade, pois, embora vejamos uma nova configuração no mundo ocidental, alguns valores medievais permaneceram durante muito tempo para muitos sujeitos, grupos e ideias, pois o mundo novo descoberto não destruiu suas crenças e nem se transformou instantaneamente. Embutidos na descoberta, permaneceram ou se sincretizaram valores tradicionais com valores modernos. Para nós parece interessante trazer alguns dados sobre o navegador Vasco da Gama e sobre o processo histórico o qual vivenciou, pois ele é o personagem principal da narrativa aqui estudada. Em 1487 Bartolomeu Dias saiu de Lisboa com três navios e a responsabilidade de descobrir um caminho marítimo pelo qual fosse possível contornar a África. Primeiro refez a rota de Diogo Cão pela costa, porém mais tarde se afastou do litoral, adentrando no oceano. Dias relatou as dificuldades e os perigos do lugar que nomeou Cabo das Tormentas. Assim criaram mais lendas que afastavam os navegadores da costa da África no tempo do D. Henrique. Mais tarde criou-se o nome Cabo da Boa Esperança, como propaganda para expedições 50. Os portugueses nem sequer sabiam se existia um caminho para o Índico. Assim, ao invés de depender dos relatos dos viajantes, a Coroa preferiu encomendar investigações próprias. A corte portuguesa não sabia se as explorações deveriam ser levadas mais adiante ou se deveriam permanecer sobre a África. A morte de D. João e a ascensão de D. Manuel foi decisiva nesse processo. 49 BILLINI, Lígia. Notas sobre a cultura, política e sociedade no mundo português do século XVI. Disponível em: < Acesso em: 22 out p Idem, p

36 O chefe da expedição foi Vasco da Gama. Os relatos sobre esse personagem são escassos e idealizados. Biógrafos o descrevem [...] como um pioneiro que atuou nas raças inferiores e a lenda negra de um Imperialista impiedoso e aproveitador 51. Vasco da Gama era um provinciano que não tinha paciência para a vida na corte. D. Manuel esperava que os portugueses difundissem o cristianismo na Índia, devendo ser recompensados. Gama partiu em 8 de julho de 1497 com quatro navios, levou 3 meses para percorrer o trajeto de 10 mil quilômetros de mar aberto, a maior viagem realizada sem que se avistasse a terra. Então logo chegou a Santa Helena, mas a relação com os nativos não foi boa, nem os ventos e o mar foram favoráveis. Somente um mês e meio depois conseguiu prosseguir viagem junto os companheiros. Passado mais um mês, acreditavam estar na Ásia, mas dessa vez isso se justifica pelo fato de os trajes dos nativos serem de seda e cetim e encontraram pessoas habituadas a navios grandes e até maiores que os dos portugueses. A partir daí Gama utilizou informações locais, bem como pilotos que conheciam o mar da região para chegar a Calicute, e o fez em 23 dias. Não conhecendo a cultura local, os portugueses confundiram o hinduísmo com uma forma desconhecida de cristianismo. Gama levou presentes terríveis aos olhos locais: tecidos, chapéus, casacos, jarros, mel e coral. Os nativos se desagradaram e o trataram como um mercador. Pelo intento, os portugueses quiseram sair logo dali. Não respeitando os costumes locais, saíram em época errada, custando a vida da metade da população. Se não fosse a viagem de mais tempo a mar aberto, a missão teria sido, por completo, um fracasso. Armesto cita Van Leur para dizer que essa expedição pouco alterou os impérios locais até o século XVII, quando a Companhia Holandesa das Índias Orientais lançou uma rota mais rápida para atravessar o oceano e estabeleceu monopólios. Para Armesto 52, a viagem de Gama merece uma parte da fama que costuma a ter, pois a expedição significou avanço na globalização do comércio, possibilitou que os navios da Europa participassem dos extensos lucros que floresciam no comércio do Oceano Índico. Pode não ter afetado os nativos, mas transformou a Europa a partir de um contato mais estreito com o Oriente e o emergente mundo atlântico em contato com civilizações mais ricas e antigas. Sobre o processo das navegações é relevante discutirmos a escola de Sagres, uma vez que continua dando um valor a esta escola quando a mesma nem existiu. Ao se estudar o pioneirismo ibérico, parte dos professores de história da rede pública de ensino apresenta a escola de Sagres como um fator determinante para a expansão marítima 53, pois a consideram como um lugar em que se 51 Idem, p ARMESTO, Felipe F. Os desbravadores: uma história mundial da exploração da terra. São Paulo: Cia. das Letras, Essa afirmação é fruto da minha própria experiência enquanto estudante de escola pública. Não raro podemos encontrar tal ideia, mesmo nos livros didáticos atuais. 36

37 reuniam exploradores, cientistas, os quais definiam os métodos para navegar, desenhar cartas e adaptar navios, de acordo com estudos astronômicos, meteorológicos e oceanográficos. Entre os pesquisadores estariam Colombo, Dias e Gama. Essa perspectiva tem sido muito criticada e estudos têm demonstrado que ela nada foi além de uma história construída com fins políticos e econômicos. O historiador português Ayres de Sá (1899) afirma que não há um observatório em Sagres ou em outro lugar de Portugal. Segundo ele, não há documentos que demonstrem isso e ainda se espanta ao pensar na possibilidade de ter existido a escola e nem sequer os biógrafos do infante tenham registrado algo tão importante. Thomaz Oscar Marcondes de Souza, sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, escreveu na Revista de História, em 1953, que existia uma escola, mas não era tão famosa assim e nem ficava em Sagres. Especula que talvez existiria em Lagos, de onde partiram para a África; para ele, na medida em que navegavam, surgiam problemas náuticos que, pouco a pouco, eram resolvidos, resultando em conhecimentos sobre as navegações. Segundo Souza, o ensino era rudimentar e apenas nos últimos anos do reinado de D. João II houve estudos científicos, que chegariam ao apogeu com D. João III. Para Pestana Ramos (2008), não há provas documentais ou arqueológicas que comprovem a existência da escola em Sagres. O autor defende que a escola de Sagres nunca realmente existiu, considerando-a uma construção nacionalista do século XIX. Para ele, as referências em torno da escola de Sagres são baseadas em uma fonte inglesa que registrou algumas construções em Sagres, porém nada referente a uma escola de navegação. Segundo Ramos, o historiador português Oliveira Martin no século XIX teria afirmado a existência da escola de Sales, sendo fruto de uma construção de uma identidade portuguesa que incluía o amplo domínio das tecnologias náuticas. Na realidade, existiram algumas disciplinas náuticas na Universidade de Lisboa, instituídas pelo infante D. Henrique. 3 OS LUSÍADAS: resistências e decepções das grandes navegações A história das Grandes Navegações não é tão gloriosa como há muito tempo se vinha pensando. O próprio Camões, que se encarrega de cantar os grandes feitos portugueses, se mostra resistente diante delas e ainda tece críticas, como analisaremos posteriormente. O historiador Fábio Pestana Ramos 54 explica as condições dos navios portugueses e as dificuldades enfrentadas durante as viagens à Índia. Uma questão, apontada por ele, era a escassez de 54 RAMOS, Fábio Pestana. Os problemas enfrentados no cotidiano das navegações portuguesas da Carreira da Índia: fator 37

38 alimentos em Portugal, fator que se refletia nos navios. A embarcação recebia o equivalente a cinco meses de alimentação, quando permaneciam no navio no mínimo durante sete meses. Não podiam repor esses alimentos, pois, devido aos ventos e às correntes marítimas, tinham que fazer o caminho sempre em alto mar, de Lisboa até a Índia. Era determinada uma quantidade específica de alimentos diariamente aos tripulantes, o que não saciava sua fome e os enfraquecia. Ramos não deixa de evidenciar que algumas pessoas tinham privilégios, como fidalgos e oficiais, que, além de receberem os alimentos de melhor qualidade, recebiam em maior quantidade. A falta de condições de armazenamento fazia com que a comida estragasse. Com isso muitas pessoas passavam fome a tal ponto que, em algumas embarcações, as pessoas recorriam aos ratos para suprir sua necessidade biológica. Outro fator apontado pelo historiador é a falta de espaço e as condições insalubres desses navios. Segundo ele, o navio embarcava de 800 a 900 pessoas. Ao dividir esse número pelo espaço ocupado, calculou-se em torno de duas pessoas por metro quadrado. Assim, um lugar pouco higienizado com um fluxo muito grande de pessoas, dava condições favoráveis à proliferação de doenças. No século XVI, as pestes eram comuns na Europa. Provavelmente alguns navegadores já vinham com a doença do continente, mas as condições desfavoráveis de higiene faziam com que essa situação se agravasse, além de que outras pessoas poderiam pegar a doença no navio, bem como nativos no Oriente. O autor aponta que médicos eram raros e o atendimento ficava apenas entre os membros da corte. Para os demais tripulantes sobrava o atendimento do barbeiro e do padre, que atuavam como sangrador e enfermeiro. A técnica mais utilizada, tanto pelo médico quanto pelo barbeiro, era a da sangria, que consistia em colocar sanguessugas no paciente, o que, além de não curar, causava anemia. A realidade nas navegações propiciava o conflito, uma vez que o espaço era pequeno, a fome era uma constante e as doenças se espalhavam rapidamente. Fábio Ramos aponta que os naufrágios eram bastante comuns nesse contexto, pois, dos navios que saiam de Lisboa de , um a cada cinco naufragou. As principais causas eram o mau tempo, a falta de conhecimento do território, das águas e dos regimes dos ventos, o excesso de carga, o desgaste das embarcações, bem como doenças e ataques piratas. Depois de ter explanado sobre as condições dos navios, passemos a analisar a fonte. Mais adiante poderemos perceber como Camões demonstrou essas dificuldades e como ele resistiu e criticou a expansão marítima. de abandono gradual da Carreira da Índia: fator de abandono gradual da rota das especiarias. In: Rev. Hist., São Paulo, nº 137, dez Disponível em < Acesso em: 22 out

39 Para demonstrar as dificuldades das navegações e os conflitos, Camões utilizou dois personagens (Baco e Adamastor) e alguns eventos marítimos (como as tempestades até chegar a Melinde) e a tempestade provocada por Baco para impedir a chegada dos portugueses às Índias: Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força do ímpeto cruel, Se para derribar então vieram A fortíssima torre de Babel. Nos altíssimos mares, que cresceram, A pequena grandura dum batel Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustém nas ondas tanto 55. Esse trecho apresenta uma terrível tempestade que quebrou, inclusive, o navio de Paulo da Gama. Camões usou um fato histórico (naufrágio de Paulo da Gama) para dar maior veracidade do seu relato. As tempestades eram apenas um dos perigos que os prodigiosos homens do mar poderiam enfrentar. Neste momento fazemos uma análise mais atenciosa em torno do Adamastor. Assim podemos analisar a sua fala: Ó gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, E por trabalhos vãos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, Nunca arados d'estranho ou próprio lenho; Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza e do húmido elemento, A nenhum grande humano concedidos De nobre ou de imortal merecimento, Ouve os danos de mi que apercebidos Estão a teu sobejo atrevimento, Por todo o largo mar e pola terra Que inda hás-de sojugar com dura guerra 56. Adamastor enfurecido condena o atrevimento dos portugueses, de terem navegado em mares nunca dantes navegados. Pois eles, então, passariam a conhecer o segredo que nenhum outro homem conheceu e pelo atrevimento pagariam as consequências: Verão morrer com fome os filhos caros, Em tanto amor gerados e nascidos; 55 CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Lisboa: Editorial Verbo Canto VI, estrofe CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Lisboa: Editorial Verbo Canto V, estrofe 41 e

40 Verão os Cafres, ásperos e avaros, Tirar à linda dama seus vestidos; Os cristalinos membros e perclaros À calma, ao frio, ao ar, verão despidos, Depois de ter pisada, longamente, Cos delicados pés a areia ardente 57. Adamastor anuncia a alguns navegadores que morrerão no Cabo das Tormentas, através de naufrágios, fome, frio. Nesse sentido, podemos dialogar sobre a realidade dos navios com as promessas de desastre do grande monstro do mar, como afirma Rui Roque 58, baseado nos pesquisadores Francisco C. Domigues 59 e Inácio Guerreiro 60 : A alimentação e a água potável constituíam um problema recorrente. No que respeita aos mantimentos, enquanto os passageiros deviam garantir à partida a sua própria subsistência durante a viagem, o que raramente acontecia, tanto por ignorância como por insuficiência de recursos, cabia ao armador o abastecimento da despensa do navio, por forma a manter toda a tripulação. Mesmo em condições normais, os alimentos eram alvo de distribuição racionada, efectuada numa base diária ou mensal consoante o tipo de produto, verificando-se níveis de verdadeira penúria, impostos por circunstâncias desfavoráveis. Ainda que se recorresse pontualmente ao abate de animais e à pesca, a dieta a bordo centrava-se no consumo de biscoito - pão cozido pelo menos duas vezes, aumentando o seu período de conservação -, enchidos e alimentos salgados, sobretudo carne de porco, mas também algum peixe, acompanhados pela ração diária de vinho. Devido à cupidez dos fornecedores oficiais, os géneros eram frequentemente de qualidade duvidosa, o que originava a sua rápida deterioração em contacto com o calor e a humidade tropicais. Camões foi soldado e navegador da corte portuguesa. Sabia na prática as condições dos navios, das navegações e da luta contra exércitos de outros países. Isso significa que, mesmo ao reconhecer o pioneirismo português, Camões não se rende à ideologia dominante completamente, mas o Adamastor, personificado no Cabo das Tormentas, representa, também, o medo e o desafio a que se arriscavam os marinheiros ao navegarem por mares desconhecidos. São medos sentidos através dos mitos antigos, das ameaças de uma Instituição e das situações climáticas. Por conseguinte, analisaremos um episódio que demonstra a resistência às navegações na obra de Camões, o que não significa uma voz isolada, mas, ao contrário, representa o que pensava parte da sociedade portuguesa. Compreendemos que o imaginário português sobre as navegações, bem como as resistências, compõem a história de Portugal. Por esse motivo nos propomos a fazer a discussão, embora tenhamos percebido que muitos pesquisadores se ausentam dessas discussão por acharem mais propício e talvez julgarem terem sido mais importantes as consequências dessa expansão marítima. 57 Idem, p ROQUE, Rui. Navegações portuguesas. Disponível em: < Acesso em: 22 out DOMINGUES, Francisco Contente; GUERREIRO, Inácio. A vida a bordo na carreira da Índia: século XVI. Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1988, Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXIV. 60 GUERREIRO, Inácio. Particularidades da vida no mar. Revista Oceanos, nº 38, Lisboa, p

41 Discutiremos aqui o episódio do Velho do Restelo, presente no Canto IV, nas estrofes 94 a 104. Nesse momento da narrativa, Vasco da Gama conta ao Rei de Melinde a história de Portugal (III e IV) e, no final, conta a partida de Portugal. Gama descreve as mães e esposas chorando e se lamentando pela partida na praia do Restelo e, em meio ao choro, o velho começa a dizer: Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C'uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas! 61 Para além dos fatos históricos, podemos analisar a escolha de Camões em apresentar a saída das naus da praia do Restelo pelo lado simbólico. De fato foi dessa praia que partiram os portugueses para a Índia e para muitos outros lugares, pois era um lugar estratégico, com ventos favoráveis e seguro. Além disso, a palavra restelo está envolvida com o cuidado com a terra, é o instrumento que serve para limpar, para cuidar da terra. Não se trata apenas do nome da praia, mas do nome do próprio personagem velho, representando aquele que tem a experiência e que defende os valores tradicionais. Camões utiliza elementos simbólicos para mostrar o apego de algumas pessoas e grupos sociais à terra. Armesto afirma que existia uma corrente, em Portugal, que era contra a política ultramarina direcionada por D. João III a favor da Índia com o abandono das conquistas africanas. Isso significa que o discurso contrário às navegações não era recurso estético ou apenas uma opinião de Camões, pois consistia em uma sociedade em que existiam pessoas que criticavam a expansão marítima, outros que tinham dúvidas e, por fim, os que a defendiam. Isso serve para compreendermos que uma sociedade não se transforma de uma hora para outra, e nem que as pessoas estão assujeitadas a um projeto político vencedor. As pessoas temiam o que poderia vir, estavam acostumadas a cultivar seus alimentos, a ir à igreja, elementos típicos do pensamento medieval. A partir desse trecho podemos confirmar a teoria da longa duração 62 e refutar o quadripartismo francês 63, pois o que se demonstra é que, em um período de transformações, há pessoas que resistem a 61 CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Lisboa: Editorial Verbo, Canto IV, estrofe Teoria criada por Fernand Braudel ( ). Ela consiste em analisar os processos históricos que permanecem mesmo acontecendo transformações sociais. Pode-se mudar a estrutura, o modo de produção, mas há elementos do modo de produção anterior que permanecem, pois a transformação da mentalidade é bem mais demorada do que os fatos econômicos e socais. Assim essa perspectiva estuda as resistências, permanências e regularidades das sociedades. Para ele é a longa duração que deve ser eixo das pesquisas, pois o que é rápido e está totalmente definido não pode ser encarado como algo real. Para saber mais, consultar: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: 41

42 essas mudanças e, ainda, confirma que a História não é parcelada em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, mas um processo de ruptura e continuidade, sendo o quadripartismo insuficiente para explicar as mentalidades e os costumes. Isso se explica pelo fato de que as transformações, mesmo gerando novas sociedades, estas trazem continuidades de seu passado. Camões demonstra isso, claramente, quando, através da fala de Adamastor, pede para os navegantes não navegarem por mares desconhecidos. É interessante como se demonstra a preocupação com a fama. Certamente Camões tratou do tema por influência dos gregos e romanos, que tinham essa preocupação de deixar boa memória para as gerações futuras, pois, para eles, a memória era uma maneira de preservar a glória e a história, e isso se confirma na estrofe 102: Nunca juízo algum alto e profundo,/ Nem cítara sonora, ou vivo engenho,/ Te dê por isso fama nem memória,/ Mas contigo se acabe o nome e glória. O velho deseja que eles não tenham talento, que não lhes reste nada nem nome, mas que se percam com os mares. A seguir, analisamos mais um trecho: A que novos desastres determinas De levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos, e de minas D'ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? que histórias? Que triunfos, que palmas, que vitórias? 64 A fala do velho mostra que, ao invés de vitórias, a expansão marítima trará desastres, mortes, tristezas. Questiona que fama lhes dará diante dos prejuízos. Nas estrofes seguintes, o velho diz que, no momento em que invadem outras regiões, deixam as portas abertas para que Portugal também seja invadido. O discurso do Velho do Restelo corresponde a um gênero antigo da literatura, cultivado desde a poesia grega, sendo pelos gregos conhecido como propemptikón 65, ou seja, adeus a um viajante que parte. Os elementos desse gênero são: o viajante (representado por Gama e seus marinheiros); quem se despede (o velho); a relação que os une (o fato de serem portugueses); o cenário apropriado para a despedida (a praia do Restelo, com os navios a ponto de zarpar). Perspectiva, Segundo Chesneaux, É preciso advertir desde já que esse sistema quadripartite de organização da história universal [Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea] é um fato francês. Em outros países, o passado está organizado de modo diferente, em função de pontos de referência diferentes. Mas é talvez na França que a sistematização da história universal numa estrutura rígida, quadripartite, é mais extremada, mais acabada. Esse quadripartismo cumpre certo número de funções precisas, ao mesmo tempo no nível das instituições universitárias e no nível da ideologia. Desempenha o papel de um verdadeiro aparelho ideológico de Estado. Para saber mais consultar: Chesneaux, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. São Paulo: Ática, CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto IV, estrofe ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar-comum. São Paulo: EdUSP,

43 Constam ainda outros temas no poema, como as dificuldades em decorrência das condições de navegação: tempestades, ventos contrários; os perigos de navegar em mares desconhecidos. Assim acrescenta ao gênero o que os gregos definem como skhetliasmós. Trata-se de uma lamentação, ou reclamação, cuja finalidade é persuadir o viajante a desistir de fazê-la. Camões demonstra o domínio dos clássicos e a influência direta de Homero e de Virgílio. Em relação às decepções das navegações, podemos perceber, através do trecho: O favor com que mais se acende o engenho/não no dá a pátria, não, que está metida/no gosto da cobiça e na rudeza/dũa austera, apagada e vil tristeza. Camões afirma que não quer mais escrever, pois as pessoas não o escutam, não se sensibilizam, estão envolvidas no egoísmo e só pensam em dinheiro, e, em seguida, afirma: Que o bom Religioso verdadeiro/glória vã não pretende nem dinheiro 66. Mesmo escrevendo isso, Camões não se apresenta como um opositor às navegações, mas como aquele que estava incerto sobre elas, pois percebe, desde logo, a ganância das pessoas envolvidas. Em momentos antes dessas oitavas, Camões apresenta futuras conquistas portuguesas (através da máquina do mundo 67 ), como exemplo a de Santa Cruz (atual Brasil), como afirma na estrofe 140: Mas cá onde mais se alarga, ali tereis Parte também, co pau vermelho nota; De Santa Cruz o nome lhe poreis; Descobri-la-á a primeira vossa frota. Ao longo desta costa, que tereis, Irá buscando a parte mais remota O Magalhães, no feito, com verdade, Português, porém não na lealdade A descrição do pau vermelho se refere ao pau-brasil, cuja extração e comércio compôs o primeiro ciclo econômico brasileiro, e Santa Cruz se refere ao nome anteriormente dado ao Brasil. Ao se referir a Magalhães, refere-se à primeira circunavegação, mas o critica porque estava a serviço da Espanha, e não de Portugal. Camões, embora, predominantemente, defenda os valores portugueses e a superioridade em relação aos países descobertos ou colonizados, não o faz absolutamente, pois embutida a esse louvor vem a crítica, representada pelo Velho do Restelo, que personifica o medo do mar, demonstrando a própria insegurança (não tão desbravadora) e os vestígios do pensamento medieval. Além de, no canto X, Camões criticar a cobiça, a ruindade e pede para que o rei olhe para os outros povos, sobre sua diversidade e dificuldades, que o oficio lhes seja dado a partir do talento de cada um. 66 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Editorial Verbo. Lisboa, Canto X, estrofe Máquina do Mundo é o instrumento pelo qual Tétis mostra para Gama as futuras conquistas de Portugal como um presente em recompensa aos seus trabalhados. Assim lhe é revelado o funcionamento do universo de acordo com o modelo ptolomaico. Para saber mais, consultar: CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto X. 43

44 Há alguns camonianos, e mesmo renascentistas, que consideram Camões conservador por mostrar uma certa resistências às navegações. Consideram sua postura como má vontade e falta de espírito de aventura. Esses discursos serviam para impulsionar os portugueses às navegações, prometendo fama e riquezas, uma vez que o desejo de navegar não era unânime. Ao contrário, os perigos e as condições de navegação fizeram com que alguns portugueses preferissem ficar em terra firme. Além disso, Camões também critica as guerras que sucederam apenas em busca de riquezas, embora para as conquistas tivessem o sentido de levar o nome de Deus. Assim podemos compreender como a epopeia camoniana se manifesta diante da nova sociedade que está emergindo no tempo da navegação de Vasco da Gama. Renato J. Ribeiro 68 discute o papel do texto em uma determinada sociedade: O texto persegue uma estratégia e, por isso, é fundamental conhecer quem ele define como leitor. Em outras palavras, um texto não é reflexo, porém arma. Um pensador político não procura refletir o seu tempo e sociedade; quer produzir efeitos. E estes ele visa através de sua arma específica, o texto. A designação do leitor é, portanto, a de quem deverá ser afetado pelo texto. Os leitores constituem o campo da eficácia própria do discurso. A leitura é o processo pelo qual se dá tal eficácia. Escrever e ler, portanto, não são meros efeitos: são produzires. Ribeiro contribuiu para pensar que Camões não era mero reprodutor das novas ideias que vinham surgindo. Ele as adota com cautela, ele as critica, analisa e, enfim, se deixa influenciar por alguns elementos. Ele é sujeito de seu tempo. Como tal, ele se encanta pelas novas descobertas portuguesas e pelas promessas de um futuro brilhante, não apenas ele, mas como muitos renascentistas do seu tempo. Dessa forma, não se pode afirmar que Camões defendeu a colonização, no sentido de legitimar a escravidão e o tráfico, ou o trabalho forçado, a exploração econômica, o imperialismo, etc. Não podemos julgar esse autor por fatos que ele não presenciou e nem o podemos culpabilizar por interpretações de sua obra construídas principalmente no final do século XIX e início do século XX. Camões é fruto de um dualismo de dois tempos. Seu posicionamento não é isento, mas também não era possível ele enxergar o horizonte sangrento que os mares azuis iriam pintar, pois morre em O ENCONTRO DE DOIS MUNDOS: a visão de Camões sobre a história portuguesa e os orientais Camões utilizou diversas fontes para construir sua epopeia. Entre as águas que ele bebeu estão as dos historiadores cronistas. A influência histórica se dá basicamente através das crônicas de Fernão Lopes, de Rui de Pina, de João de Barros, entre outros. Todos os três tiveram sua importância 68 RIBEIRO, Renato J. A filosofia política na História. Revista Discurso. São Paulo, vol. 2, nº 14, p ,

45 histórica, porém discutimos aqui apenas a influência de Fernão Lopes por uma questão de espaço. Dito isso, Fernão Lopes nasceu em 1380 ou 1390 e viveu até Além de cronista-historiador, ocupou o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo e foi escrivão de D. Duarte e de D. João I. Presenciou a crise de , batalha de Aljubarrota, e o tratado de Windsor, o que lhe deu propriedade para escrever sobre os temas, além de ter sido responsável por escrever os feitos da dinastia de Avis. As obras que existem até os dias de hoje são: Crónica de el-rei D. Pedro, Crónica de el-rei Fernando, Crónica de el-rei D. João I. A peculiaridade de sua narrativa cronística é o redimensionamento de uma narrativa panegírica para uma narrativa mais autônoma em busca de uma realidade nua e cronológica. Não havia ainda uma História propriamente dita na Idade Média, mas cronistas ligados a uma corte real. Assim, a história aparece a partir de feitos de cavalaria, torneios, aventuras de reis, etc., de modo que os ideias que impelem a quase totalidade dos homens são pelos cronistas desconhecidos já que se ocupavam quase exclusivamente da nobreza e do clero. O grande papel de Fernão Lopes é superar essa visão parcial e apresentar a sociedade portuguesa no século XIV e XV em um aspecto geral, no qual aparecem fatores contraditórios e ações individuais. A partir dessa visão sobre Fernão Lopes, discutimos aqui a história portuguesa a partir do próprio Camões, além de procurar identificar seu posicionamento diante do outro. Para isso vejamos alguns eventos, a começar pela batalha de Ourique 69 : Em nenhuma outra cousa confiado, Senão no sumo Deus, que o Céu regia, Que tão pouco era o povo batizado, Que para um só cem Mouros haveria. Julga qualquer juízo sossegado Por mais temeridade que ousadia, Cometer um tamanho ajuntamento, Que para um cavaleiro houvesse cento Cinco Reis Mouros são os inimigos, Dos quais o principal Ismar se chama; Todos exprimentados nos perigos Da guerra, onde se alcança a ilustre fama. Seguem guerreiras damas seus amigos, Imitando a formosa e forte Dama, De quem tanto os Troianos se ajudaram, E as que o Termodonte já gostaram. Camões se refere à Batalha de Ourique e ao processo de fundação do Reino de Portugal. Essa batalha se desenrolou entre cristãos e mouros e é significativa para o momento histórico envolvido, como pela narrativa camoniana, pois legitima um Deus que ajuda os portugueses a vencer a batalha. 69 Idem. Canto III, estrofe

46 Diz a lenda que se tratava de cinco reis mouros contra um português, constituindo o exército mouro cem homens para cada um português. Além disso, a lenda afirma que Deus apareceu a D. Henrique e disse que a vitória portuguesa seria segura. No poema apresenta-se um inimigo numeroso e os portugueses com o número infimo. A matutina luz serena e fria, As estrelas do Pólo já apartava, Quando na Cruz o Filho de Maria, Amostrando-se a Afonso, o animava. Ele, adorando quem lhe aparecia, Na Fé todo inflamado assim gritava: - "Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, E não a mim, que creio o que podeis!" Com tal milagre os ânimos da gente Portuguesa inflamados, levantavam Por seu Rei natural este excelente Príncipe, que do peito tanto amavam; E diante do exército potente Dos imigos, gritando o céu tocavam, Dizendo em alta voz: "Real, real, Por Afonso alto Rei de Portugal 70. Camões apresenta Deus como uma inspiração. Não é Ele que lutará contra os mouros, mas é ele que dará força para que o rei se fortaleça. A partir da inspiração do rei, a recomposição e o fortalecimento do exército seria apenas uma consequência. No final da última estrofe aparece o povo aclamando o Rei. O que percebemos nessas estrofes é que a coroa portuguesa estava sustentada por uma crença divina e, mais que isso, pela Igreja. O que nos interessa enfatizar é como o poder da coroa estava sustentado na religião. Essas estrofes nos mostram a heroicidade dos portugueses criada por Camões. Não era um exército fraco, ao contrário, era um exército que possuía cem soldados para cada português, sendo humanamente impossível vencê-lo. Ao mostrar a grandeza do inimigo, Camões pinta a própria história, apresentando homens fortes, heróis e vencedores. Cleonice Berardinelli 71 afirma que, das três batalhas que são apresentadas na narrativa (Ourique, Salado e Aljubarrota), a menos lícita é a primeira, pois não havia outro motivo para a guerra além da expansão do território e a cristianização. Se, porém, se pensar que a sociedade daquela época estava instituída por um poder religioso e a consequência disso é que as pessoas lutavam por acreditar no que estavam fazendo (fé), por terem que fazê-lo (a Igreja que ditava a ordem) e por ser uma das 70 Idem. Estrofes 45 e BERARDINELLI, Cleonice. Estudos camonianos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Cátedra Padre Antonio Vieira, Instituto Camões, p

47 poucas oportunidades de as pessoas ascenderem socialmente, essa batalha era tão legítima quanto as outras. No Canto IV, Camões narra outra batalha, mas dessa vez contra os castelhanos. Trata-se da Batalha de Aljubarrota: Deu sinal a trombeta Castelhana, Horrendo, fero, ingente e temeroso; Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana Atrás tornou as ondas de medroso; Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana; Correu ao mar o Tejo duvidoso; E as mães, que o som terríbil escutaram, Aos peitos os filhinhos apertaram 72 A batalha de Aljubarrota acontece porque, com a morte de D. Fernando, Portugal passaria a ser governado pelo reino de Castela, tornando-se dependente desse reino. Isso gerou muito descontentamento por parte da população, que, em consequência, incentiva e nomeia D. João, irmão bastardo de D. Fernando, como rei. O resultado dessa ação é a invasão dos castelhanos em território português. Neste momento, a batalha se iniciava, o desenrolar da batalha e o apoio inglês deu aos portugueses a vitória. Camões apresenta isso nas estrofes 18 e 19, nesse mesmo canto: Eu só, com meus vassalos e com esta (E dizendo isto arranca meia espada), Defenderei da força dura e infesta A terra nunca de outrem sojugada! Em virtude do Rei, da Pátria mesta, Da lealdade já por vós negada, Vencerei não só estes adversários. Mas quantos a meu Rei forem contrários Camões está se referindo a 6 de abril de 1384, data na qual Nuno Álvares e os seus soldados venciam, nos Atoleiros, os castelhanos, mas estes continuam a invadir Portugal pelas beiras em grande número e transpõem o Mondego, perto de Coimbra. Em Soure, D. João de Castela recebe uma carta de Nuno Álvares, em que este lhe diz que se vá, que é melhor deixar Portugal em paz. As consequências dessa batalha foram a consolidação da identidade nacional portuguesa, que até então se encontrava em formação e deu condições para que Portugal se tornasse livre e independente. 72 CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto IV, verso

48 Durante o Condado Portucalense, que antecipou o poderio de D. Afonso, já se conquistavam muitos territórios que pertenciam aos mouros. Ao mesmo tempo, porém, já não se sustentava devido às inúmeras tentativas de independência. Assim, após a morte de D. Henriques, D. Afonso Henriques de Barganha ascende ao poder e assina o tratado de Zamora, tratado que prevê a independência e a fundação de Portugal. Berardinelli afirma que, na fala de Nun' Álvares, Camões utiliza recursos de persuasão, e ainda o louvor 73 : - Como! Não sois vós inda os descendentes Daqueles, que debaixo da bandeira Do grande Henriques, feros e valentes, Vencestes esta gente tão guerreira? Quando tantas bandeiras, tantas gentes Puseram em fugida, de maneira Que sete ilustres Condes lhe trouxeram Presos, afora a presa que tiveram? Camões louva a vitória da batalha e, mais que isso, legitima essa vitória, pois recorre à história de Portugal para mostrar que os que lutaram em Aljubarrota eram o mesmo povo que lutou em Ourique, ou seja, uma povo com uma força inestimável, que é capaz de prender qualquer conde e de lutar com um exército 99 vezes maior que o seu. Para a autora citada acima, essa batalha é aquela a que Camões se dedicou mais, descrevendo mais ações e descrevendo seus participantes. Para ela, isso é justificado pelo fato de que essa batalha é a afirmação da dinastia de Avis, da qual descenderia Dom Sebastião, a quem Camões dedica a epopeia 74. Na batalha de Salado (Reconquista), Camões compara os portugueses a Davi e os mouros a Saul: Qual o membrudo e bárbaro Gigante, Do rei Saul, com causa, tão temido, Vendo o pastor inerme estar diante, Só de pedras e esforço apercebido, Com palavras soberbas o arrogante Despreza o fraco moço mal vestido, Que, rodeando a funda, o desengana Quanto mais pode a Fé que a força humana: Desta arte o Mouro pérfido despreza O poder dos Cristãos, e não entende 73 CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto IV, estrofe BERARDINELLI, Cleonice. Estudos camonianos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Cátedra Padre Antonio Vieira, Instituto Camões, p

49 Que está ajudado da Alta Fortaleza, A quem o inferno horrífico se rende. Co ela o Castelhano, e com destreza De Marrocos o Rei comete e ofende. O Português, que tudo estima em nada, Se faz temer ao Reino de Granada 75. Camões se refere ao rei de Granada, que invade Gilbraltar e assola os territórios cristãos no sul da Península. Para vencer esse inimigo, Espanha e Portugal, outrora inimigos, se aliam para expulsar os árabes. Os ibéricos se tornam vitoriosos e travaram as tentativas de reconquista. Além disso, Camões desenha valores cristãos na narrativa, caracterizando os portugueses como humildes, simples e crentes, comparando-os, ainda, com o personagem bíblico Davi. Quanto aos mouros, descreve-os como arrogantes, sem fé e até malignos, pois afirma que, ao desconhecer a fé e a Alta Fortaleza, o inferno horrífico se rende. Dessa forma, subentende-se que os mouros se rendem junto com o inferno. As três batalhas são descritas diferentemente uma das outras, sendo algumas mais violentas que outras (Ourique), delineando melhor os personagens (Aljubarrota), desqualificando o inimigo por adjetivação como arrogante e bárbaro (Salado) e, por último, mostrando a superioridade do inimigo (em números) diante do seu exército (Ourique). Após apontadas algumas questões históricas, passemos a analisar como Camões compreende os orientais. Em diversos momentos da narrativa, Camões demonstra certo preconceito e uma visão etnocêntrica perante os orientais. Podemos perceber isso na própria criação do personagem Baco, do qual muitos estudiosos procuraram compreender seu sentido na narrativa. Maria Cunha e Luiz Piva 76 apontam alguns autores que se tornaram conhecidos pelas interpretações que fizeram. Dentre eles podemos destacar Frei São Lourenço e Manuel Faria de Sousa (XVII), que viram Baco como o Demônio; Nuno Álvares Moniz viu como os Maometanos, sendo Vênus e Baco a representação dos Cristãos e Maometanos, correspondentemente, e, por último, Bowra, que vê em Baco o espírito do Oriente, representando vaidade, astúcia e desordem. Todas essas interpretações fazem sentido e, mais que isso, podem ser analisadas historicamente. Chama atenção a concepção de Bowra, pois o sentido de Baco estar contra as navegações se deve ao fato de ele temer perder sua glorificação na Índia. Por isso, para nós, ele representaria o diferente, o Oriente e a personificação do medo. Camões, embora apresente, em um dos planos da narrativa, a ação dos deuses, coloca sempre o Deus cristão acima de todos, como podemos ver a quem Gama pede ajuda: Eu, Levantando as mãos ao santo coro 75 CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto III, estrofes 111 e CUNHA, Maria H.; PIVA, Luiz. Lirismo e epopeia em Luís Camões. São Paulo: Cultrix; Ed. da USP, p

50 Dos anjos, que tão longe nos guiou, A Deus pedi que removesse os duros Casos, que Adamastor contou futuros 77. A presença de Baco está marcada pela influência estética de Virgílio e de Homero. Em Eneida, Juno é quem retarda as conquistas romanas e Vênus é quem os protege. Em Ilíada, é mais que um duelo, é uma guerra. Não são apenas dois deuses que lutam e que ora são levemente ajudados por outros. Sua essência move muitos deuses, que se dividiam entre gregos e troianos. Em defesa dos primeiros ficaram Tetis, Hera, Atena e Poseidon. Em favor dos segundos ficaram Apolo, Afrodite. Zeus teve um papel dúbio, pois ora ele se posicionava a favor dos gregos, ora dos troianos, mas quase sempre de forma indireta. Mas mais do que a questão estética, o que nos interessa aqui é compreender o imaginário português acerca dos indianos e africanos, designados por Camões como mouros. Além disso, interessa-nos compreender como o poeta os representou na narrativa, pois Camões não se preocupou em apenas lutar por interesses políticos e econômicos, mas também por uma questão religiosa: propagar o cristianismo no Oriente. Já demonstrado como Camões compreende os mouros a partir de sua própria narrativa histórica, cabe-nos analisar essa visão em outros momentos do poema, como aqui, no episódio do Velho do Rastelo 78 : Não tens junto contigo o ismaelita, Com quem sempre terás guerras sobejas? Não segue ele do Arábio a lei maldita, Se tu pela de Cristo só pelejas? Não tem cidades mil, terra infinita, Se terras e riqueza mais desejas? Não é ele por armas esforçado, Se queres por vitórias ser louvado? Deixas criar às portas o inimigo, Por ires buscar outro de tão longe, Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e vá deitando a longe; Buscas o incerto e incógnito perigo Por que a Fama te exalte e te lisonje Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia? O poeta lusitano apresenta, no discurso do velho, uma visão negativista perante o Islamismo e do Alcorão, ao dizer lei maldita. Afirma que os portugueses não se podem deixar influenciar pela ganância dos árabes (aqui já fazendo uma crítica aos árabes), uma vez que só por Cristo eles lutam, e, 77 CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto V, estrofe CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto IV, estrofes 100 e

51 ainda, já possuem terra o suficiente. O velho continua afirmando que, ao arrumar inimigos longe da pátria (indianos), deixará o caminho aberto para os (árabes) que tão perto dali vivem. É recorrente a utilização de adjetivos como bárbaro, nefano e pérfidos. Adjetivos extremamente negativos e pesados que demonstram a intolerância religiosa, não apenas do narrador, mas do próprio autor, pois, em toda a narrativa não irá apresentar sob outra perspectiva os árabes. Descreve-os como se os próprios deuses pagãos não gostassem dos mouros: O mouro, mal querido já de Marte 79. As expedições marítimas para a Índia eram, também, para estabelecer o cristianismo e lutar contra a religião dos estrangeiros, pois, como afirma Onde vêm semear de Cristo a lei/ E dar novo costume e novo rei 80. No canto VIII aparece uma conversão: Isto tudo lhe houvera a diligência De Monçaide fiel, que também leva, Que, inspirado de angélica influência, Quer no livro de Cristo que se escreva. O ditoso africano, que a clemência Divina assim tirou da escura treva. E tão longe da pátria achou maneira Para subir à pátria verdadeira! 81 Ao chegar a Calecute, os portugueses encontram um árabe e, através da evangelização dos portugueses, ele acaba se convertendo ao cristianismo, afastando-se daquilo que o autor considera trevas e escrevendo seu nome no livro da vida, adquirindo seu lugar no céu, pátria verdadeira. No canto X, quando Tétis apresenta o futuro dos portugueses através da máquina do mundo, esses povos continuam a ser vistos de forma marginal e os cristãos como superiores: Vês Europa Cristã, mais alta e clara Que as outras em polícia e fortaleza. Vês África, dos bens do mundo avara, Inculta e toda cheia de bruteza; Co Cabo que até'aqui se vos negara, Que assentou pera o Austro a Natureza. Olha essa terra toda, que se habita Dessa gente sem Lei, quási infinita 82. A primeira região a apresentar é a Europa cristã, registrando sua concepção eurocentrista. Não a apresenta, porém, de qualquer modo. Ela está localizada em um nível superior em riquezas e conhecimento, pois é alta e clara. Já a África é demonstrada como o oposto, bruta e sem lei. 79 Idem. Canto VII, estrofe 95 e verso Idem. Canto VII, estrofe 15 verso 7 e Idem, Canto VII, estrofe Idem. Canto X, estrofe

52 Agora não é apenas a religião que é criticada, mas a organização social e os costumes: Vê do Benomotapa o grande império, De selvática gente, negra e nua, Onde Gonçalo morte e vitupério Padecerá, pola Fé santa sua. Nace por este incógnito Hemispério O metal por que mais a gente sua. Vê que do lago donde se derrama O Nilo, também vindo está Cuama. Olha as casas dos negros, como estão Sem portas, confiados, em seus ninhos, Na justiça real e defensão E na fidelidade dos vizinhos; Olha deles a bruta multidão, Qual bando espesso e negro de estorninhos, Combaterá em Sofala a fortaleza, Que defenderá Nhaia com destreza 83 Camões chama os africanos de selvagem e o negro soa um tanto negativado nessa parte da narrativa, onde fala da morte de um português que procurava cristianizar aquelas terras. Camões via os negros como inferiores, e isto é mais perceptível quando associa a raça com a forma de organização social, que ele julga inferior comparada a dele, como ele compara a condição dessas pessoas e as próprias pessoas são metaforizadas como animais. Mapeamos e identificamos a visão de Camões sobre os africanos e indianos, mas não nos cabe aqui julgá-lo, senão compreendê-lo a partir do seu tempo. Camões não fala sozinho. Em sua poesia há inúmeras vozes de sujeitos. Portugal, nesse momento histórico, é uma sociedade que pensa o outro, o diferente, o oriental como inferior, infiel, indigno, impuro, pois os vê a partir de valores preconcebidos e etnocentristas. 5 NAVEGADORES CHEGAM AO PARAÍSO: as recompensas e o reconhecimento das grandes navegações um paraíso: Nos últimos dois cantos da narrativa, Camões apresenta a Ilha dos Amores e a descreve como Ali, com mil refrescos e manjares, Com vinhos odoríferos e rosas; Em cristalinos paços singulares Formosos leitos, e elas mais formosas; 83 Idem. Canto X, estrofe

53 Enfim, com mil deleites não vulgares, Os esperem as Ninfas amorosas, De amor feridas, para lhes entregarem Quanto delas os olhos cobiçarem 84 Vênus prepara a Ilha para os portugueses como recompensa pelos diversos imfortúnios que Baco causou. Nesse trecho, Vênus pede a presença das ninfas e que Cupido as acerte com as flechas para que ninfas e portugueses se apaixonem. Em seguida chegam os navegadores à ilha: Nesta frescura tal desembarcavam Já das naus os segundos Argonautas, Onde pela floresta se deixavam Andar as belas Deusas, como incautas. Algumas doces cítaras tocavam, Algumas harpas e sonoras flautas, Outras com os arcos de ouro se fingiam Seguir os animais, que não seguiam 85. banquete: Depois de os navegadores e as ninfas terem passado um momento amoroso, é preparado um Ali, em cadeiras ricas, cristalinas, Se assentam dous e dous, amante e dama; Noutras, à cabeceira, d'ouro finas, Está co a bela Deusa o claro Gama. De iguarias suaves e divinas, A quem não chega a Egípcia antiga fama, Se acumulam os pratos de fulvo ouro, Trazidos lá do Atlântico tesouro. Os vinhos odoríferos, que acima Estão não só do Itálico Falerno Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima Com todo o ajuntamento sempiterno, Nos vasos, onde em vão trabalha a lima, Crespas escumas erguem, que no interno Coração movem súbita alegria, Saltando co a mistura d'água fria 86 Camões descreve a Ilha dos Amores como um paraíso. São lindas ninfas correndo e felizes, umas cantam, outras namoram. Há a harpa, o tão clássico instrumento. No banquete, as louças são de ouro, o vinho e a ambrosia (alimento dos deuses). É a felicidade e harmonia enfim se concretizando. 84 Idem. Canto IX, estrofe Idem. Canto IX, estrofe Idem. Canto X, estrofes 3 e 4. 53

54 Com esses versos de Camões podemos refletir que, no período das grandes navegações, existia não só um imaginário sobre os monstros e as criaturas horrendas que viviam no mar, mas também uma ideia de paraíso terrestre. Wanessa de Souza 87 afirma que, ao saírem para as expedições, os navegadores traziam consigo imagens e valores que foram projetados pela sociedade na qual viviam. Ao se depararem com uma realidade que lhes era estranha, associavam o que viam com o que já tinham projetado em suas mentes. Por isso, ao se depararem com lugares aprazíveis em terras desconhecidas, acreditavam ter chegado ao paraíso terrestre, lugar original do mundo, conhecido pelos cristãos como Jardim do Éden. Não se tratava de um lugar específico, o paraíso, já que sido localizado do Oriente, no meio do oceano, no "novo mundo". Sérgio Buarque de Holanda 88 cita Arnoldsson para afirmar que, comumente, ao descreverem uma nova terra ou uma nova descoberta, os navegadores copiavam na íntegra Ovídeo acerca da idade de ouro e por vezes a própria bíblia. São inúmeros os registros nesse sentido, desde a carta de Caminha até os livros do José de Alencar. Os indígenas são vistos como seres puros e harmônicos, as plantas, os animais e a paisagem, num sentido geral, são tomadas como elementos que manifestam o paraíso. Certamente Camões, como um navegador, imaginou um paraíso e o desenhou para nós como a Ilha dos Amores. Podemos ver que é um paraíso em que reina o amor e em que a mulher tem um papel de destaque. O que revela o outro lado de Camões, um Camões neoplatônico, com novas ideias a respeito do amor e da mulher, o que evidencia o contraste de dois paradigmas vivenciados pelos renascentistas. 87 SOUZA, Vanessa. O imaginário europeu, o imaginário sobre o Novo Mundo e suas gentes. Disponível em: < Acesso em: 25 out HOLANDA, Sérgio B. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, p

55 CAPÍTULO II PENSAMENTO MEDIEVAL: UMA HERANÇA DA ANTIGUIDADE Quem lê e compreende a fundo, hoje, Platão, Aristóteles, Virgílio, Cícero, Agostinho, Tomás de Aquino, Dante? No caso da experiência medieval, a cultura antiga foi salva. Graças a um trabalho de imenso valor, que hoje poucos sabem apreciar [...]. Luiz Lauand Para analisar o paradigma que Camões vivia e a influência de pensamentos de outras épocas e de outros autores n'os Lusíadas é necessário apresentar uma perspectiva teórica que fundamente este trabalho. Dessa forma, a perspectiva adotada para fazer esta discussão é a da História Intelectual, que tem como pressuposto compreender como um intelectual contribuiu com o pensamento e as ideias de sua sociedade, e como ele próprio foi envolvido por ideias que permeavam aquela sociedade. A necessidade de discutir outros autores e outros contextos se dá para se poder ver a forma como Camões os adota dentro dos enquadramentos de sua sociedade, como gerou e pensou a epopeia, pois, embora se sustente em outras épocas, Michel Winock 89 afirma que as ideias estão ligadas aos centros de emissão e seu conteúdo é inseparável da função social em razão da qual se organizam. Camões adotou vários conceitos e várias concepções de outras épocas e os reelaborou para seu uso. Chartier entende que [...] a apropriação, tal como entendemos, visa a elaboração de uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os constroem. Assim, buscamos compreender como Camões utilizou determinados autores e como ele interpretou temas já debatidos antes sobre o viés de suas preocupações. 1 A INFLUÊNCIA CLÁSSICA A importância de se estudar Homero, Platão e Aristóteles se deve ao fato de o pensamento ocidental estar fundamentado nesses autores. Durante a Idade Média somente era permitida a leitura de autores antigos que correspondessem ao pensamento da Igreja. Por isso, nesse período, muitos autores deixaram de ser lidos e outros foram reinterpretados. Podemos considerar que existe uma história de leituras e uma história da imitação 90 que 89 WINOCK, Michel. As ideias políticas. In: Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, Aristóteles não associava a imitação ao falso e enganoso. A imitação da natureza por parte da arte não é um retratar, realizar uma simples cópia do real, mas um fazer como, produzir à maneira de imitar um processo ou uma produção. 55

56 permeiam as obras clássicas 91, principalmente na Antiguidade e no Medievo. Camões, por exemplo, utilizou como fonte vários autores de sua época, como Petrarca, Fernão Lopes, Pedro Nunes, entre outros. Paralelamente, porém, também utilizou obras da Antiguidade, como Homero, Platão, Virgílio, ou seja, autores que foram fonte, mas que também serviram de inspiração na produção da obra a partir do conceito de imitação cunhado por Aristóteles n'a Poética. Segundo ele, [...] a imitação é realizada segundo esses três aspectos, como dissemos no princípio, a saber: os meios, os objetos, a maneira 92. Esse conceito de imitação é fundamental para compreendermos a intertextualidade de Eneida em Os Lusíadas, pois o autor imitava a obra partir dos personagens, da estrutura da narrativa e do que é narrado. Isso não quer significar que seja uma mera cópia daquilo que já foi escrito. Ao contrário, havia todo um processo de produção na construção da obra e o que acontecia é que uma servia de modelo e referência para outra, no sentido de o novo escritor legitimar a sua própria obra 93. Assim, para Virgílio construir Eneida, ele se baseou fundamentalmente em Ilíada, e Camões, para escrever Os Lusíadas, se baseou em Eneida. Assim se percebe que há um diálogo entre as três obras, pois a história de Roma começa na Ilíada com o troiano Eneias e tem continuidade na obra de Virgílio, já a história de Portugal começa em Eneida, com a própria formação de Roma, e tem continuidade n'os Lusíadas. Dialogando com autores do tempo de Camões e com autores da Antiguidade Clássica, é possível reconhecer a que movimento Camões pertencia, e isso é fundamental para compreender o papel que ele e suas ideias exerciam na sociedade, pois, segundo Sônia Lacerda, [...] a intertextualidade é uma maneira de contextualizar 94. Dessa forma, percebe-se que Camões utiliza uma ramificação de referências em sua obra, pois, como intelectual, bebe em diversas fontes, e cada leitura permitirá que realize uma obra diferente de outros do seu tempo, exatamente pela influência, pelo acesso às ideias e pela produção subjetiva de cada autor. 91 Itálo Calvino, em seu livro Porque Ler os Clássicos, editado pela Cia. das Letras em 1994, define o que é um texto clássico e argumenta sua importância. Dentro dos diferentes motivos, citamos alguns: Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los. São livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram. 92 ARISTÓTELES. A poética, 2001, p Os Antigos liam obras consideradas grandes e mencionavam elementos delas em seu texto, uma espécie do que chamamos hoje de referência. Eles o faziam porque isso mostrava que estavam cientes das produções da época. Apresentavam-se como aqueles que dominavam o conhecimento apresentado nos livros. Isso era fundamental para que a obra fosse reconhecida e admirada. 94 LACERDA, Sônia; KIRSCHNER, Tereza C. Tradição intelectual e espaço historiográfico ou por que dar atenção aos textos clássicos. IN: Os grandes nomes da história intelectual. Marcos A. Lopes(Org.). Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, p

57 2 O PENSAMENTO MEDIEVAL O pensamento medieval teve suas bases fundamentadas e influenciadas pelo pensamento greco-romano e cristão. Isso aconteceu em decorrência da decadência do Império Romano e do estabelecimento da Igreja Católica como a instituição que se manteve durante o período e se tornou responsável pela preservação e pela difusão da cultura. Desde o período patrístico, afirma-nos Inês Inácio, os intelectuais cristãos se baseavam através de textos, sendo estes, textos sagrados (revelação), textos de padres e escritores cristãos dos primeiros séculos e os textos antigos paulatinamente cristianizados. Esses textos tinham um saber que deveria ser apropriado e transmitido como ensinara Agostinho. A partir da difusão da regra de São Bento (525), o mosteiro se tornou um lugar erudito. Assim, a figura do monge, rapidamente, estava ligada ao mundo das Letras. Em uma época em que os livros eram raros, conheciam-se as obras principalmente através de textos. Tânia Luca afirma que essa foi uma característica da cultura do período, pois se conheciam as obras da Antiguidade somente por meio de citações. A Idade Média, além de copiar e venerar os textos antigos, enriqueceu sua herança e adaptou-a à sua realidade e preocupações. O grande representante da filosofia medieval até o século XIII foi Santo Agostinho, mas outros pensadores de alguma forma contribuíram para o pensamento medieval; a partir do século XIII o represente será São Tomás de Aquino. Em um contexto de crise, a reflexão sobre a vida e a sociedade não era a primeira preocupação. Devido às diversas invasões e à luta pela sobrevivência, as pessoas se voltavam para conhecimentos práticos. Mesmo nos mosteiros havia a dificuldade de estudar, pois o acesso às obras antigas era difícil, uma vez que grande parte delas já estavam destruídas ou estavam escritas em grego (que poucos conheciam). A dificuldade também consistia em olhar os textos pagãos sob a ótica do cristianismo e reinterpretá-los. São muitos os autores que contribuíram não só com o pensamento medieval, mas com a estruturação do pensamento ocidental. Dentre eles podemos citar: Boécio ( ), Cassiodoro ( ), Isidoro de Sevilha ( ), Beda ( ), Alcuíno ( ), João Escoto Erígena (século IX), entre outros. A partir do século X, o mundo medieval sofreu transformações em decorrência dos progressos técnicos e contato com o Oriente através das cruzadas. Essas transformações também influenciaram os intelectuais, que passaram a encarar os estudos de outra forma: aumentou o interesse por disciplinas profanas que saiam da égide das sagradas escrituras. Passaram a valorizar o direito romano e a medicina. Houve melhor desenvolvimento da química e da botânica. Esses estudos foram 57

58 representados, principalmente, por Abbón de Fleury (X) e Gerberto de Aurillac (XI). É importante salientar que os conhecimentos da ciência e os da superstição se entrecruzavam, pois não estavam bem delineados entre si, assim uns influenciavam e completavam os outros. Santo Anselmo ( ) foi um pensador que se preocupou em racionalizar a sua fé. Seu argumento se baseava no raciocínio, na lei, o que faz com que a verdade de uma proposição resulte do absurdo da que a contradiz. A partir de seus estudos, o gosto pela dialética e pela lógica aumentou na sociedade medieval. Assim podemos perceber que a cultura clássica influenciou o pensamento medieval desde o início e que não se apresentou como uma mera reprodução, visto que os medievais, a partir de suas condições sócio-históricas, reinterpretaram as produções antigas à luz do seu presente. 3 NEOPLATONISMO: AS CONTRIBUIÇÕES DE SANTO AGOSTINHO E DE PETRARCA PARA A FILOSOFIA CAMONIANA Camões, além de dar um caráter histórico à sua epopeia, também apresenta um caráter filosófico. Isso tem maior destaque na poesia lírica, pois foi esse modelo que teve maior produção e maior influência de Petrarca no Renascimento. Por ora buscamos analisar como Camões utilizou o pensamento agostiniano e petrarquiano na poesia e, principalmente, na epopeia. Para isso necessitamos conhecer um pouco das ideias e das estruturas de pensamento em que estavam fundamentados esses pensadores, pois o neoplatonismo de Agostinho e de Petrarca influenciou diretamente Camões. O neoplatonismo foi um sistema filosófico criado pelos romanos como modo de sintetizar e de preservar a religião e a filosofia grega diante do progresso do cristianismo. Segundo Ines C. Inácio 95, esse sistema de pensamento não sofreu influência apenas de Platão e de Pitágoras, mas de Aristóteles, dos estóicos, dos eleatas e dos judaico-alexandrinos, sendo marcado por três fases: fase alexandrinoromana (I e II), representada por Plotino; fase síria (IV e V), representada por Jâmblico; e fase ateniense (V e VI), representada por Proclo. Segundo Inácio e Luca 96, os neoplatônicos representavam o mundo como uma emanação da força divina (Uno). Sendo constituído fases da emanação, a primeira como o mundo da razão, a segunda o mundo psíquico e, enfim e a terceira o mundo material. Assim, o mundo material seria o mais decadente, com pouca luz e fonte do mal. Os neoplatônicos colocavam em cada fase da emanação os deuses e os demônios das religiões do Oriente e greco-romanas, dando vida a um sincretismo complexo da religião e da filosofia antigas. Adivinhação, jejuns e preces na busca de 95 INÁCIO, Ines C.; LUCA, Tania R. de. O pensamento medieval. São Paulo: Ática, Idem, ibidem. 58

59 fundir-se com o Uno tinham grande importância, e algumas dessas práticas foram adotadas pelos cristãos. Mesmo com os empecilhos, o neoplatonismo não apenas sobreviveu, mas serviu de inspiração aos primeiros cristãos, como podemos perceber nos pontos apresentados pelo autores citados acima: (i) a caracterização do Uno enquanto simplicidade, autossuficiência, infinitude e absoluta liberdade; (ii) a sua visão como luz interior que recomendava Conhece-te a ti mesmo ; e (iii) sua identificação como causa do bem supremo, de onde tudo provém e do qual tudo depende, aproximava-se da ideia cristã de Deus. As semelhanças chegavam ao ponto de alguns autores considerarem o neoplatonismo uma antecipação pagã do cristianismo. A reflexão neoplatônica já não era filosófica mas metafísica. O homem e a natureza não eram o centro das especulações, mas intermediários em um processo de conhecimento que tinha no Uno sua origem e seu objetivo, pois o material, mundo natural, não seria mais nada do que fonte de todo o erro e pecado. O cristianismo revelava verdades sobrenaturais, que não resultavam das reflexões humanas e, embora contivesse uma concepção da vida e do destino do homem, não podia se afirmar enquanto filosofia. Inácio e Luca 97 apresentam uma característica presente nos padres da Igreja: a divisão de pensamente e de aceitação das ideias antigas, pois alguns padres rejeitaram a herança dos filósofos pagãos, enquanto outros se esforçavam por salvar dela tudo o que poderia ser preservado para confirmar a autoridade da revelação. Esta última postura foi se fortalecendo à medida que os cristãos se viram obrigados a tomar posição diante da sabedoria pagã, fosse para combatê-la, absorvê-la ou utilizá-la como dogma e defesa da fé. O maior problema que permeou a Idade Média foi a relação de razão e fé. A patrística foi uma tentativa de apresentar o cristianismo como doutrina não oposta às verdades racionais do pensamento helênico. O pressuposto é que a sabedoria pagã era obra da razão, portanto, uma obra de Deus. Para Inacio e Luca 98 : Ironicamente o neoplatonismo - elaboração mais refinada que o mundo antigo produziu em defesa do paganismo apresentou-se aos Santos Padres como capaz, com ligeiros retoques, de auxiliar a fé cristã a tomar consciência de sua própria estrutura interna e difundir com argumentos racionais, elaborando-se como teologia. Um dos pensadores que mais influenciou nesse processo foi Santo Agostinho, pois viveu nesse período de transição. Nascido em Numídia (atual Argélia), se converteu ao cristianismo por influência de algumas crianças e de Cícero 99, e, como cristão, sentiu a necessidade de estabelecer, sobre a 97 Idem, ibidem. 98 Idem, p AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, p. 5 e

60 religião, uma fundamentação filosófica à luz da razão e não somente da fé. Aquilo que outrora se tratava de algumas regras de conduta moral e a crença na salvação através do sacrifício de Cristo, aquilo passou a ter um conjunto de ideias racionais e lógicas. Os primeiros a conciliarem a verdade revelada com ideias filosóficas foram os cristãos da filosofia patrística e que influenciaram Agostinho. Para Santo Agostinho, [...] a razão se relaciona duplamente com a fé: precede-a e é sua consequência. É necessário compreender para crer e crer para compreender 100, reflexão que sintetiza sua vida, pois, antes da conversão, participava dos círculos maniqueus, ecletismo ciceroniano e do neoplatonismo de Plotino. Santo Agostinho baseou-se fortemente no neoplatonismo para desenvolver sua filosofia. Para Plotino, existira somente Deus ou Uno, que emanava luz sobre toda a criação. Sendo as sombras nada mais que a carência de luz, ou seja, a luz não podia atingir as sombras, não significando, contudo, que elas tivessem uma real existência. Para Agostinho tudo aquilo que existe, é necessariamente bom, pois a ideia de bem está implicada na ideia de ser. Dessa forma, nem Deus nem a matéria são responsáveis pelo mal, pois o mal deve ser visto ao contrário de Deus, no não-ser. Além das ideias acima apresentadas, Agostinho se baseou nos neoplatônicos para refletir sobre o amor e a beleza. Para os gregos, a beleza não está ligada à arte, mas ao amor. Por isso é mediador entre o mundo sensível e o mundo das ideias. Para Platão, a beleza existe em si mesma e o amor elevaria ao bem. O verdadeiro amor é o desejo do bem (esforço de uma vida reta), do belo (autodomínio), da sabedoria (filósofo busca alcançá-la), da felicidade (desejo de todo o homem), da imortalidade (pelo concretização do bem) e o absoluto (Deus). Quando Agostinho conhece o amor, a misericórdia, compreende o amor não apenas como aquilo que ligaria uma pessoa a outra, mas como também aquilo que ligaria a Deus. Assim, há uma estreita relação entre as criaturas e o criador, pois, se foram criadas por Deus, a ele retornarão. Baseiase em Hiponense ao considerar que só amamos o que é belo. Assim, [...] relaciona a beleza e o amor, num amplexo de dependência como num estreitamento de perfume e seiva na rosa 101. Camões herdou não somente os ideais de Platão, como os dos próprios neoplatônicos. Assim, o amor tem dois sentidos, sendo um o Amor (letra maiúscula), o qual é um ideal superior, único e perfeito, ou seja, o Bem supremo ao qual os humanos anseiam. Sendo, porém, imperfeito, o homem não pode alcançar esse ideal, restando somente o amor (letra minúscula), físico, simples imitação do Amor ideal. A mulher, objeto de desejo, mesmo sendo imperfeita, é espiritualizada, constituindo-se enquanto uma mulher ideal. 100 Intellige ut credas, crede ut intelligas. 101 AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, p

61 Maria Helena Ribeiro Cunha 102 apresenta três ideias neoplatônicas em Camões: (i) o amor idealizado à altura do espírito, que o faz contemplar uma realidade extraterrena; (ii) o amor é o que orienta o espírito e, se dirigido pelo Bem, ilumina a realidade inteligível; e (iii) sublimado na ausência, o amor ou a contemplação da mulher amada, reflexo da Beleza divina, enobrece a alma e executa a imagem incorporal. Há, em Camões, o conflito entre o pensamento divino e o corpo terreno 103, de forma a submeter o corpo (imperfeito) à alma (perfeita), razão pela qual utiliza a doutrina cristã para a superação dos vícios da carne. Para Camões, a partir do Amor o ser humano poder-se-ia tornar imortal, pois o Amor supera a morte. Por vezes o Amor é representado pela mulher, que supera a transitoriedade da vida: Com palavras formais e estipulantes/ Se prometem eterna companhia,/ Em vida e morte, de honra e alegria 104. Assim, para Camões, os amantes seriam inseparáveis, fazendo-os voltar à condição de Uno e perfeito. Segundo Hernani Cidade 105, Camões tem uma simpatia por aqueles que sofrem por amor, como podemos notar no trecho que se refere a Inês de Castro, considerado o trecho mais lírico de toda epopeia e, ao mesmo tempo, trágico. Inês é vítima do amor, por ele sofre e morre: Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito (Se de humano é matar uma donzela Fraca e sem força, só por ter sujeito O coração a quem soube vencê-la) A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens à morte escura dela; Mova-te a piedade sua e minha, Pois te não move a culpa que não tinha [...] 106. Inês apresenta sua condição miserável e sua incapacidade de ação diante do amor sentido pelo príncipe, nas condições em que se encontra faz um último pedido para que seu sofrimento não seja ainda maior: implora para que a coroa não mate seus filhos. Esse episódio é narrado no canto III, quando Vasco da Gama está contando a história de Portugal ao Rei Melinde. No final do episódio Gama lamenta o acontecido: Bem puderas, ó Sol, da vista destes Teus raios apartar aquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia. 102 CUNHA, Maria H. R.; PIVA, Luiz. Lirismo e epopeia em Camões. São Paulo: Cultrix, CIDADE, Hernani. Luis de Camões - o lírico. Lisboa: Bertrand, CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto IX, estrofe CIDADE, Hernani. Luis de Camões - o lírico. Lisboa: Bertrand, CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto III, verso

62 Vós, ó côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetisses! Assim como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lascivas maltratada Da menina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está morta a pálida donzela, Secas do rosto as rosas, e perdida A branca e viva cor, coa doce vida 107. Nas estrofes apresentadas acima, o sofrimento e a dor da morte de Inês, sentidos por Gama, foram tão grandes que, para ele, o sol nem deveria ter nascido naquele dia. O fato de descrever a personagem como uma moça tão meiga e jovem, transfere, também, ao leitor o sofrimento da perda. A partir do que afirma Luiz Roncari, [...] geralmente as personagens positivas, como os heróis, expressam o que pensa o autor, e as negativas refletem aquilo que ele quer combater 108. Assim, Vasco da Gama representa o posicionamento de Camões diante da morte da Inês de Castro, não só reprovando, mas havendo uma identificação entre aqueles que sofrem por amor. A temática do Amor teve grande importância na epopeia se considerarmos que Vênus (deusa do amor) é quem guia e protege os portugueses das emboscadas daquele que é ausência de amor, que é feio, Baco. O poeta justifica a expansão marítima baseando-se na fundação de um Império Cristão no oriente, de fato Portugal estabeleceu o cristianismo nas colônias portuguesas, mas também defendiam outros interesses. Camões apresenta, em vários momentos da narrativa, a cristianização de outros povos: E vejamos entanto que acontece Aqueles tão famosos navegantes, Depois que a branda Vénus enfraquece O furor vão dos ventos repugnantes: Depois que a larga terra lhe aparece, Fim de suas porfias tão constantes, Onde vêm semear de Cristo a lei, E dar novo costume e novo Rei 109 Nessa altura da narrativa, Camões faz críticas aos europeus não cristãos e narra sobre a ajuda que os navegadores receberam de Vênus. Uma vez que chegaram à Índia passa ser o momento de cristianizar os orientais e estabelecer um novo rei. 107 Idem. Canto III, verso 133 e RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp, (Didática, 2). p CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto VII, verso

63 Os navegadores portugueses, em vários momentos da narrativa, são elevados à condição de heróis e até superiores aos deuses (greco-romanos), pois, enquanto alguns deuses são movidos pelo ódio e inveja, os portugueses estão em busca da expansão da glória e império da nação. Assim os portugueses estão caracterizados pelos valores Cristãos. Em nenhum momento sentem a ira como Aquiles e nem são guiados pelo ódio (por Baco), mas estão embutidos de sofrimento, humildade e dedicação, apresentando-se apenas com características que poderíamos definir como Bem. Dessa forma, essa característica dos personagens portugueses vai ao encontro do que pensava Cícero, citado por Santo Agostinho: Imaginava Homero estas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; eu preferiria que trouxesse para nós as perfeições divinas? 110. Camões, além de dar características humanas aos deuses pagãos, dá características divinas aos humanos portugueses. A Ilha de Vênus (cantos IX e X) representa o paraíso cristão, ao mesmo tempo que o mundo das ideias de Platão. É onde a natureza é pacífica e amorosa. É onde o mundo divino e humano pela primeira vez se encontram (diferentemente das clássicas Ilíada e Eneida, nas quais a divindade se relacionava diretamente com os humanos em toda epopeia, até o ponto de deuses brigarem fisicamente entre si). Camões parte do amor físico das ninfas com os heróis para um amor à pátria e a Deus. De uma os cabelos de ouro o vento leva Correndo, e de outra as fraldas delicadas; Acende-se o desejo, que se ceva Nas alvas carnes súbito mostradas; Uma de indústria cai, e já releva, Com mostras mais macias que indignadas, Que sobre ela, empecendo, também caia Quem a seguiu pela arenosa praia. Ó que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves, que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã, e na sesta, Que Vénus com prazeres inflamava, Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. 111 Na primeira estrofe apresenta-se o encontro dos navegadores com as ninfas e o desejo que nascia entre eles. No segundo apresenta-se esse amor físico acontecendo na prática através de beijos e sussurros. Camões, ao mesmo tempo que defende esse amor físico, dizendo que antes de julgar é 110 AGOSTINHO, Aurélio. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, p (grifo nosso) CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Canto IX, versos 71 e 84 63

64 melhor experimentar (em uma tentativa de justificar sua submissão ao amor físico, inferior ao amor divino), defende que quem não pode experimentá-lo que o julgue. Neste momento discutiremos um pouco sobre o grande poeta Petrarca ( ), que é considerado o fundador do humanismo. Nas palavras de Alexei Bueno, nele se fundem e se contradizem o último homem medieval e o primeiro homem moderno. É através de Petrarca que surgem os grandes poetas do Renascimento, influenciados, entre outras coisas, pela concepção de amor, mulher e o soneto, criado por ele. Petrarca influenciou muito Camões. Segundo Hernani Cidade, Petrarca emocionou a tal ponto Camões que o levou a traduzi-lo e a parafraseá-lo, frequentemente, não diferenciando muito os dois poemas. Isto é perceptível na seleção feita por Octávio Elísio, que compara os poemas de Petrarca com os de Camões, nos quais podemos perceber claramente a influência do primeiro sobre o segundo: A alma minha gentil que agora parte tão cedo deste mundo à outra vida, terá certo no céu grata acolhida indo habitar sua mais beata parte 112. Esta primeira estrofe foi escrita por Petrarca, em seguida, vejamos, como Camões reinterpreta o poema deste autor: Alma minha gentil, que te partiste tão cedo desta vida, descontente, repousa lá no Céu eternamente e viva eu cá na terra sempre triste 113. Podemos perceber o diálogo entre os poemas de Petrarca e Camões, ambos demonstram a brevidade da vida, e a ideia que um céu reservará um lugar para alma. Não tenho paz nem posso fazer guerra; temo e espero e do ardor ao gelo passo e vôo para o céu e desço à terra; e nada aperto e todo mundo abraço 114. Em outro poema podemos ver, novamente, a influência de Petrarca em Camões. Poeta lusitano reinterpreta e reescreve, na primeira estrofe o eu-lírico encontra-se sem saber o que fazer, utiliza antíteses como paz e guerra, céu e terra. Na estrofe seguinte veremos como Camões muda o poema sem deixar de valorizar as antíteses da estrofe acima: 112 PETRARCA, Francisco. O cancioneiro. Disponível em: < Acesso em: 19 out CAMÕES. Alma minha que te partiste. Disponível em: < Acesso em: 19 out PETRARCA. Um soneto de Petrarca. Disponível em: < Acesso em: 19 out

65 Tanto de meu estado me acho incerto, que em vivo ardor tremendo estou de frio; sem causa, juntamente choro e rio, o mundo todo abarco, e nada aperto 115. Camões converte a antítese céu, inferno para a choro e rio e, ainda, no último verso Camões repete o que Petrarca disse, porém inverte a ordem das orações. Assim, podemos ver que o tema se repete nos poemas. Camões usa sinônimos, hipérbatos, antíteses, paradoxos, hipérboles e versos decassílabos. Esses elementos constituem um novo estilo, uma estrutura específica que marcou o trabalho de Petrarca e que influenciou muitos poetas. Assim, a produção de Petrarca, mais do que ser uma influência, se torna um novo estilo, um novo modelo a ser seguido. Vítor Manuel de Aguiar Silva define o petrarquismo como: Uma tradição literária rigidamente codificada sobretudo no âmbito da poesia lírica, mas também influente noutros géneros literários, desde a comédia ao poema épico, à novela e ao romance, embora manifestando-se algumas vezes sob a forma de paródia ou de uma intertextualidade ironicamente manipulada 116 Podemos ver como Petrarca influenciou diversos autores, diversos gêneros literários e durante muito tempo, pois Camões viveu duzentos anos depois e ainda Petrarca era uma grande referência, não só para os poetas, mas para diversos intelectuais que adotaram o paradigma do humanismo, o qual foi fundado por Petrarca e tinha como objetivo fazer dialogar a cultura clássica (filosofia) com os ideais cristãos (crença). 4 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA, ÁRABE E TOMISTA NA IDADE MÉDIA Em meados do século XIII houve uma renovação intelectual devido as novas fontes trazidas pelos árabes. Os árabes conheceram a ciência grega a partir de textos originais e traduções siríacas dos séculos VI e VII 117. O pensamento dos árabes era dominado por Aristóteles, mas também influenciado pelo plotinismo, pois alguns dos textos de Plotino foram atribuídos a Aristóteles. Assim, o Ocidente cristão recebeu uma herança aristótelico-platônica. Através dos estudos de tradução e interpretação dos textos antigos, os árabes produziram muitos conhecimentos que foram difundidos na Europa através da Espanha muçulmana, o que gerou 115 CAMÕES. Tanto meu amor me acho incerto. Disponível em: < Acesso em: 19 out SILVA, Vítor Manuel de A. Camões: labirintos e fascínios. 2. ed. Lisboa: Cotovia, INÁCIO, Ines C.; LUCA, Tania R. de. O pensamento medieval. São Paulo: Ática,

66 um questionamento ao pensamento medieval até então estabelecido. As principais contribuições foram a física e a metafísica aristotélicas. As obras científicas passaram a ser mais disponibilizadas aos estudiosos, em forma de tratados de matemática e astronomia, como o Almagesto, de Ptolomeu. Tratados de álgebra, aritmética e óptica eram produzidos pelos árabes. A inserção do pensamento aristotélico no mundo medieval se deu de forma resistente, pois o pensamento do Ocidente estava enraizado com a concepção platônica de Agostinho, além de que a filosofia de Aristóteles colocava, por vezes, os dogmas da Igreja em choque. Para Aristóteles, o mundo é eterno e, portanto, é incriado, e a alma nasce e morre junto com o corpo, não podendo, assim, aspirar a uma vida futura. Além de as ideias de Aristóteles contrariarem os dogmas da Igreja, o que dificultou a divulgação de suas obras na Europa cristã foram os comentários dos árabes, que acrescentavam ideias condizentes à realidade deles e que, por vezes, se manifestavam contrárias às defendida pela Igreja. Os pensadores que tiveram maior importância na divulgação das ideias de Aristóteles no Ocidente foram Avicena ( ) e Averróis. Este último, percebendo que as interpretações de Aristóteles estavam embutidas do pensamento de Platão, faz uma tentativa de retomar ao verdadeiro Aristóteles, que ele considerava ser um dos maiores filósofos. Para Averróis, poderiam existir duas verdades, uma da fé e outra da razão, mas se elas se contradissessem, a razão deveria prevalecer. Segundo Ines de Inácio e Tania Regina de Luca, a leitura de Aristóteles era proibida. A partir do século XII algumas faculdades de lógica permitiram seus estudos, mas o conhecimento da física e o da metafísica, em um primeiro momento, permaneceram restritos. Posteriormente houve a possibilidade de debater outros temas. Roberto Grosseteste ( ), franciscano platônico, teve contato com as obras de Aristóteles e com escritos árabes, o que o incentivou a refletir sobre a natureza nos seus estudos científicos. Em seu pensamento foram fundamentadas as bases da ciência experimental. Alberto Magno ( ) divulgou, traduziu, imitou e experimentou as ideias de Aristóteles. Classificou minerais, elaborou tratados, compôs uma enciclopédia em que introduz a obra de Aristóteles, a começar pela ciência, pela lógica, pela matemática, pela ética, etc. Mesmo tendo se definido como aristotélico, não excluiu Platão de seus estudos, ao contrário, uniu-os. Além dessa corrente que procura harmonizar o pensamento de Aristóteles e o pensamento cristão, surge uma filosofia mais radical, representada por Clarembal (morto em 1170) e por Amaury Bene (morto em 1206). Este último afirmava que o inferno era a ignorância e que Deus era tudo, inclusive o mal. Essas posturas contribuíram para que as ideias de Averróis entrassem nas universidades, mas não permitiram que o cristianismo as assimilasse. Dessa forma, fortaleceu-se um conflito entre os mestres das artes (filósofos) e os professores de teologia. Os filósofos buscaram uma 66

67 filosofia pura, ignorando as posturas defendidas pelos teólogos, formando gradativamente o que se chamou de averroísmo latino. Tomás de Aquino ( ) buscou cristianizar Aristóteles. Interpretou a questão da essência e existência, distinção lógica para Aristóteles, como independentes, ou seja, que a essência de uma criatura não dependia da existência, por considerar que elas não existiam por si mesmas, mas por outra realidade. Assim, acrescentou-lhe a ideia de um Deus criador. Na teoria do conhecimento, Aquino abole a luz divina para a abstração, sendo a realidade sensível a única fonte do conhecimento humano. Contrariando a teoria de Agostinho, que defendia a primazia da emoção, Aquino afirma que quanto mais se faz o uso de seu intelecto mais perto de Deus e de si mesmo ele se encontra. O ensino de Tomás de Aquino teve bastante repercussão, sendo questionado pelos filósofos, que defendiam o Aristotelismo puro, como pelos teólogos, que defendiam o pensamento de Agostinho. Os primeiros consideraram-no como um pensador que ficou na metade do caminho e os segundos criticaram-no como revolucionário responsável pela introdução de Aristóteles nas universidades e na Igreja. 4.1 Astronomia e Navegação: a influência dos gregos e dos árabes em Os Lusíadas Não podemos afirmar com certeza se Camões leu os textos originais ou de pensadores que traduziram e adaptaram as obras originais, mas podemos perceber ecos de alguns autores em sua obra. Parte das ideias que se encontram no poema foram baseadas em autores de sua época, mas estes, por sua vez, tiveram acesso às obras antigas, como temos demonstrado neste capítulo. Neste momento, procuramos analisar a influência da astronomia no poema e analisar como se deu o processo de produção desse conhecimento. A presença da astronomia n'os Lusíadas é uma temática bastante presente, pois está manifesta em várias partes do poema, pois Camões era um navegador, um observador dos céus e dos mares, utilizando o céu como referência geográfica. Para compreender a obra de Camões é necessário conhecer as teorias que estavam em voga em Portugal. Segundo Luciano Pereira da Silva 118, o maior nome da astronomia na época de Camões era Pedro Nunes, este nascido em 1502, já tinha reconhecimento na Europa. Foi cosmógrafo-mor de João III, doutorou-se em medicina em Salamanca, depois deu aula em Coimbra. Faleceu em Segundo esse mesmo autor, o livro-chave em que Camões se baseou para escrever seus posicionamentos astronômicos foi O Tratado de Sphare, de autoria de Sabroso, mas traduzido pelo 118 SILVA, Luciano P. A astronomia de Os Lusíadas. Lisboa: Junto a Investigação de Ultramar,

68 Pedro Nunes e publicado em Esse livro foi construído baseado no livro Almagesto, de Ptolomeu, o qual defende, entre outras coisas, a teoria geocêntrica, que consiste na hipótese de que a Terra estaria parada no centro do universo com os corpos celestes, inclusive o Sol, girando ao seu redor. Nunes acrescentou ao Tratado da Esfera suas anotações, o que modificava o pensamento original em alguns pontos. Esse livro era didático, servia para pessoas que desejavam abordar esse tema para as pessoas em geral, e não um livro complexo de difícil compreensão. O interessante é que as ideias que Pedro Nunes professava na universidade eram as mesmas que Camões apresenta no poema, sendo possível perceber uma influência direta. O livro de Copérnico intitulado Das Revoluções das Esferas Celestes foi publicado em 1543, no momento em que Camões estava escrevendo Os Lusíadas. Sua teoria pode ser resumida como: O mundo é esférico e finito, como todos os corpos celestes são também esféricos. O movimento dos corpos celestes é circular e uniforme (João Kepler, astrônomo, mais tarde, prova que o movimento é elíptico). O sol está imóvel no centro do sistema e em torno dele giram os planetas. Estes últimos giram em torno de si mesmos. Assim a Terra possui dois movimentos: girando em torno de seu próprio eixo e em torno do sol. Camões, ao descrever a máquina do mundo, demonstra, justamente a teoria ptolomaica. Em um primeiro momento representamos a máquina do mundo a partir da imagem e, em seguida, as estrofes. 68

69 Figura 3: Imagem representando o funcionamento da Máquina do mundo 119 Assim expressa as estrofes 79 e : Uniforme, perfeito, em si sustido, Qual, enfim, o Arquetipo que o criou. Vendo o Gama este globo, comovido De espanto e de desejo ali ficou. Diz-lhe a Deusa: - «O transunto, reduzido Em pequeno volume, aqui te dou Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas Por onde vás e irás e o que desejas Debaxo deste grande Firmamento, Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz o movimento, E Marte abaxo, bélico inimigo; O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vénus, que os amores traz consigo; Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaxo vai Diana. 119 Imagem retirada do site: < 120 CAMÕES, Luis V. Os lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,

É possível perceber a influência da antiguidade clássica na arte renascentista?

Diferentemente da arte medieval, o renascimento artístico esteve inspirado na antiguidade clássica, ou seja, nas artes greco-romana, que haviam sido esquecidas durante séculos. Para os artistas do renascimento, o contexto associado ao período medieval impossibilitou a evolução da arte em diversos aspectos.

Como a antiguidade nos influência?

Conclui-se que herdamos dos gregos vários legados, como organização do Estado, Tribunal do Júri, Direito, Cultura: Teatro, Jogos Olímpicos, conceito de democracia, enfim, a própria História, Filosofia.

Qual a influência da antiguidade clássica para o mundo moderno?

Foram influências no campo da filosofia, das artes plásticas, da arquitetura, do teatro, enfim, de muitas ideias e conceitos que deram origem às atuais ciências humanas, exatas e biológicas.

Quais influências temos dos povos antigos?

Arquitetura, grandes construções, astronomia e matemática são algumas de suas contribuições. No entanto, o maior legado dessa civilização foi o desenvolvimento do sistema de escrita ou, como todos nós conhecemos, o alfabeto.