Que relação estabelece entre a urbanização e a ascensão do rádio como fenômeno de massa?

A partir da década de 1930, vislumbramos um novo cenário político no Brasil onde a relação dos cidadãos e as instituições de controle político sofrem uma sensível mudança. A nação, grosso modo, sofreu uma mudança em sua arena política. Nesta época, as populações camponesas deixaram de representar a maioria dos cidadãos e trabalhadores que configuraram o cenário político dessas nações. Para tanto, os processos de industrialização e urbanização são de fundamental importância.

De acordo com alguns historiadores, a expansão das cidades vai criar um processo de complexificação das relações entre o capital e o trabalho. Tal fato se exprimira em um processo onde os antagonismos entre as classes operárias e os capitalistas vão se avolumar de tal maneira nunca antes vista. Agrupados em instituições sindicais, os trabalhadores vão exigir melhores condições de vida e trabalho em um contexto intelectual de plena modernização das idéias e dos governos.

No entanto, o que significava esta modernidade? Significava o fortalecimento de regimes democráticos através de eleições livres e diretas que pudessem dar o direito de ampla participação política ao cidadão. De tal maneira, poderíamos agora supor que as classes trabalhadoras (agora majoritariamente urbanas) tivessem como, principalmente por meio dos novos meios de informação (rádio e TV), protagonizar as principais decisões políticas de seu tempo.

Essa possibilidade de articulação e mobilização da população pode ser observada na ascensão dos sindicatos, greves e partidos de oposição que se mobilizaram frente ao governo. No entanto, aqui no Brasil, o Governo de Getúlio Vargas será de fundamental importância para que essa mobilização se desarticule por meio de dois elementos fundamentais: a propaganda e o controle. Não é à toa que recomendamos ao professor de história que utilize de cartazes e eventos oficias para que os alunos compreendam tal momento.

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Que relação estabelece entre a urbanização e a ascensão do rádio como fenômeno de massa?

Trabalhando dois documentos disponíveis do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, temos um exemplo claro de como o regime varguista agiu. Na Imagem 01, temos uma foto onde os trabalhadores assistem um desfile de 1º de maio organizado pelo governo em homenagem ao trabalhador. Interessante ressaltar a passividade e o apoio dos trabalhadores à manifestação organizada pelas autoridades da época. Além disso, podemos refletir porque não são os próprios trabalhadores que tomam a frente no evento.

Outro ponto de discussão interessante do trabalho com a fotografia pode ser aberto com a mensagem contida no cartaz. Os dizeres “O trabalhador sindicalizado, é o trabalhador disciplinado” demonstram como a função do sindicato perde suas características originalmente ligadas à organização de manifestações e greve que afrontam o interesse dos industriários. Dessa maneira, o professor pode levantar porque as classes trabalhadoras apoiavam o governo de Getúlio Vargas.

Que relação estabelece entre a urbanização e a ascensão do rádio como fenômeno de massa?

Para isso, o professor pode explanar como as leis trabalhistas fizeram de Getúlio um governante extremamente popular. Além disso, o professor pode indicar de que maneira o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e as leis de controle sobre os sindicatos foram de grande relevância nesse processo de controle desejado pelas autoridades da época. Ao fim dessa explicação o professor pode reivindicar uma atividade onde os alunos descrevam o cartaz oficial da imagem 02.

Por Rainer Sousa
Graduado em História
Equipe Brasil Escola

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Introdução

1Muitos diagnósticos da nossa “pós-modernidade” dizem-nos que a concretude dos sólidos se derrete de modo irreversível; o nosso tempo seria aquele em que não há compromisso com a ideia de permanência e durabilidade. Teríamos abandonado o homogéneo, o seguro, o duradouro, e abraçado o relativo, o flutuante, o ambíguo. Frederic Jameson (1994) afirma que a condição actual se distingue por um enfraquecimento da historicidade, pela fragmentação do sujeito e por uma evaporação das “grandes narrativas”. Homi Bhabha (1995) defende que vivemos no tempo do hibridismo, onde as identidades consistem numa trajectória de desenvolvimento negociada “na emergência dos interstícios” - Appadurai (2004) dirá que elas se constroem no contexto de uma relação disjuntiva entre as várias dimensões dos fluxos culturais globais, dos vários “scapes”. Giddens (2000) acentua o ritmo da mudança, sustentando que se as civilizações pré-modernas podem ter sido consideravelmente mais dinâmicas que outros sistemas tradicionais, é, contudo, nas condições actuais, que a rapidez da mudança é extrema. Por conseguinte, as dúvidas, as incertezas, as ansiedades, os “medos”, para referir Bauman (2005), constituir-se-iam como dimensão existencial do mundo social contemporâneo.

2Com este pano de fundo, a temática do “público”, proveniente do discurso filosófico da modernidade, encontra-se incrustada num vasto campo de interrogações nos diversos domínios das ciências sociais. O objectivo deste artigo consiste em traçar uma muito breve perspectiva sobre a concepção do público, passando por autores como Robert Park (1972), John Dewey (1991 [1927]) e Norbert Elias (1987). Esta problemática sociopolítica viria a assumir peculiar importância a partir do trabalho do filósofo Jurgen Habermas (1984), a que atribuirei, por isso, particular ênfase. Procurarei discutir como o público surgiu primordialmente ligado a uma esfera com uma ancoragem metafórica espacial, o que, paulatinamente, se foi metamorfoseando, até desembocar na irradiação da imagem de multidão virtual. Também, mediante uma sumária apresentação do perfil do que é chamado por públicos dos media e públicos da cultura pretendo expor a actual proliferação de uma vastidão de públicos fluidos, transitórios, fugazes, meteóricos e eminentemente mercantilizados. Públicos de passagem, harmonicamente enquadrados com o ritmo vertiginoso do mundo urbano metropolitano das cidades globais. Públicos líquidos, para usar a metáfora baumaniana.

Publico e espaço

  • 1 Digno de referência é também o trabalho de Scipio Sighele – A Multidão Criminosa (1891).

3O termo “público”, oriundo do domínio da filosofia política, tendeu a tornar-se um conceito das ciências sociais, sobretudo sob a alçada de autores como Gustave le Bon (1895) e Gabriel de Tarde (1901), na Europa1 - teóricos chave que discutem a oposição entre a “multidão” e o “público” – e de Robert Park (1904) e John Dewey (1927), nos EUA. A existência de um “público”, na tradição da filosofia política e também na da filosofia social, vai a par de outros conceitos congéneres como o de “coisa pública”, “assuntos públicos” e “esfera pública”. Este conceito, que procura as suas raízes longínquas na democracia ateniense e no Iluminismo, começou por designar um certo tipo de agrupamento de pessoas, nascido da interacção no e do grupo.

4Esse grupo encontra-se reunido numa trama de lugares públicos, onde é possível cultivar a conversação política num espírito de abertura e de tolerância (Dewey, 1927) – condição sine qua non de uma democracia salutar. Deste modo, a “coisa pública” só é possível quando ela é colocada, ou, melhor dito, publicitada no âmbito que constitui a esfera pública, a “politeia”, onde se debate e delibera sobre o que é comum numa colectividade política. O conceito de “público”, em suma, vem sugerir a possibilidade de um colectivo esclarecido, leitor e participante na conversação social. Já na concepção clássica de Robert Park (1904), o público forma-se no processo de discussão, que abrange argumentação, concórdia, mas também – sublinhe-se – conflitos, na medida em que implica possivelmente indivíduos partidários de posições distintas, podendo assim redundar num conflito de argumentações. Ele (o público) implica um acto de pensar, que radica fundamentalmente no diálogo com o outro, na comunicação de uma opinião à alteridade, e no confronto com a opinião alheia. O pensar surge então como um acto público, onde as opiniões se confrontam, onde se trocam razões e argumentos e procuram consensos construídos, razão pela qual se pode inferir que pensar e comunicar são a mesma coisa (Marques, 1996). Falar de “público” é estar, portanto, perante um grupo que se envolve num debate em torno de uma questão que diz respeito à colectividade, à res pública, e em redor da qual se tecem argumentos distintos.

5O “público” institui-se como um conceito radicalmente distinto do de “multidão”, “classe” ou de “povo”, pois a interacção que acontece no grupo que forma o “público” difere substancialmente daquela que pode ocorrer noutros tipos de sociedade. O “público”, dada a ausência de papéis fixos, não tem necessariamente consciência do colectivo que [o] constitui. É, porém, no próprio decurso da interacção em torno de argumentações – e contra-argumentações – que os indivíduos constituintes do público podem ganhar autoconsciência do grupo, em geral, e da sua posição, em particular. Esta alocução tem ainda a particularidade de se fundar em considerações ostensivamente racionais, e não na esfera emocional, razão pela qual, no “público”, o rumor e o boato tendem a ser negligenciados, diferentemente do que acontece na multidão emocional e uniforme descrita por Gustave Le Bon (1895).

6Será Jurgen Habermas (1984) o teórico que com mais insistência desenvolverá a ideia de público sob um modelo espacial: o ”público” continua a remeter para a noção de um colectivo que adquire uma identidade e um perfil no processo em que ergue uma ordem de interacção com base na discussão de um problema que interessa a esse grupo. O modelo canónico habermasiano será o espaço público burguês gerado pelo Iluminismo, beneficiário do êxito dos salões, dos cafés, dos clubes e dos jornais. Efectivamente, o período das Luzes constituiu um enorme desafio pessoal, impondo a máxima de cada membro da comunidade relativamente à capacidade de pensar por si próprio, de cada um se servir do seu próprio entendimento, rompendo com a aceitação acrítica das ideias feitas e dos preconceitos dominantes.

7O que deve, contudo, ser realçado é que, com Habermas, surge uma percepção do “público” como uma dimensão intrinsecamente espacial. O domínio público assenta na responsabilidade individual e na liberdade para o uso público da razão, e essa responsabilidade individual pelo pensar projecta-se a ganha sentido num espaço público, que se traduz numa instância mediadora entre o Estado e a sociedade civil, espécie de ágora, fórum, ou lugar onde as pessoas se reúnem para deliberar publicamente sobre “assuntos de interesse geral”, sob o paradigma do discurso crítico-racional. De facto, o colectivo, que discute questões com carácter público na procura de uma opinião colectiva e de uma decisão colectiva, reúne-se em espaços, ou esferas, que contemplam enquadramentos institucionais, e que se assumem como lugares de exercício crítico autónomo, na interdependência da capacidade de diálogo. O universo do público é, pois, o universo do discurso, da argumentação, universo esse que começou a ser gerado em lugares abertos para que as pessoas pudessem trocar experiências, argumentos, estando dispostas a fazer concessões de modo a serem tomadas decisões que, não sendo unânimes, sejam passíveis de representar a “opinião pública”, ou seja, a opinião partilhada, da maioria, corolário de uma acção colectiva. O conceito de “espaço público”, associado à ideia de “esfera pública”, surge como espaço da livre expressão, espaço da palavra, da comunicação onde se discutem questões práticas e políticas e de onde emerge a opinião, resultante da conversação e do confronto entre argumentos que apelam ao princípio kantiano do exercício colectivo da razão.

8Habermas propõe um quadro racionalista e de comunicação da esfera pública. Evocando a cidade-estado grega, onde a esfera da polis,que é comum aos cidadãos livres, é rigorosamente separada da esfera da oikos, que representa o domínio, particular a cada indivíduo, da sobrevivência, da necessidade, da força e da desigualdade, Habermas considera serem “públicos” os eventos que são abertos a qualquer um. O “público” é então o conceito que designa a esfera de um colectivo e que se contrapõe a problemas de índole privada – definidos no campo do direito e do constitucionalismo.

9Note-se que esta concepção fortemente centrada na comunicação interpessoal e que rompe com as interpretações behavoristas, comportamentais, mecanicistas do comportamento humano, encontrava-se já na tradição teórica e de investigação da corrente norte-americana conhecida como interaccionismo simbólico, e que vemos em autores como George Herbert Mead (1967) ou Erving Goffman (1993). Em Mead, o termo “público” está presente, ainda que de forma muito sub-reptícia, na noção do “outro generalizado”. Para este autor, no processo de interacção social, o comportamento desse “outro generalizado” é fixado e internalizado, pelo que cada indivíduo participante de um projecto co-operativo assumirá e tomará as atitudes sociais organizadas do grupo a que pertence; e, nesse processo, forja-se uma auto-consciência, que não é mais do que a objectificação de uma relação dialógica, ou seja, um despertar em nós próprios do grupo de atitudes que estamos, reciprocamente, a despertar nos outros. As relações sociais e o papel que desempenhamos na sociedade são, pois, constitutivos da pessoa que somos. O self consistiria assim numa criação social - uma criação desse “outro generalizado” – já que, para se constituir, o indivíduo terá de se tomar a si como objecto de reflexão, agindo em consonância com aquilo que se imagina ser a expectativa da sua acção. A conduta do “Eu” perante os “outros” seria, portanto, um papel a ser representado.

  • 2 A este respeito, vale a pena citar o autor: “por vezes, o indivíduo agirá de modo inteiramente calc (...)

10Esta concepção ganhará consistência com Erving Goffman (1993), que teorizou que só somos e só existimos verdadeiramente numa relação dramática com o outro, mais precisamente, na interacção presencial, face a face. Para Goffman, o desempenho de papéis sociais é indissociável do modo como cada indivíduo concebe – e pretende manter – a sua imagem/personagem. Sob a metáfora do teatro, o sociólogo teoriza que cada um, individualmente ou em grupo, teatraliza ou é actor consoante as circunstâncias em que se encontra. As diversas “situações” que pontuam a existência quotidiana levam-nos a jogar vários papéis, para os quais nos compomos nos bastidores, e que definem a nossa identidade complexa e multifacetada. Goffman veicula a ideia de que procedemos a uma representação perante os outros, com o intuito primordial de “tentar controlar a impressão”2 que eles formulam sobre nós. Para este autor, só somos quem somos face a um outro, face a um público.

  • 3 “No universo de corte considera-se sempre um indivíduo segundo as suas implicações sociais, nas sua (...)

11Recuando agora um pouco, parece-me necessário retomar o modelo espacial de público para destacar o importante trabalho de Norbert Elias sobre a Sociedade de Corte (1987). Revestindo, nos séculos XVII e XVIII, um carácter representativo e central, a “sociedade de corte” preenche duas funções primordiais: uma função de dominação para o rei e uma outra de prestígio e distinção social para o conjunto dos membros da corte. A sociedade de que os cortesãos fazem parte é o verdadeiro centro de gravidade das suas existências. Analisando alguns aspectos da personalidade do cortesão, vemos que eles emanam das estruturas sociais, do seu papel, da rede de interdependências a que está ligado3. Os homens pertencendo a camadas privilegiadas e em especial os aristocratas de corte a quem cabia o lugar superior na escala têm o sentimento de viver uma vida mais ou menos “pública”, uma vida consagrada à society, à “vida mundana”. Os seus contactos sociais são frequentes, e os seus laços directos com a sociedade muito estreitos. A nobreza de corte constituirá, por obrigação e por vocação, durante todo o antigo regime e até às vésperas da Revolução, o verdadeiro núcleo da “boa sociedade” de corte, do “mundo”, da “boa companhia”. E o sentimento de fazer parte de uma elite, de ter uma auréola de prestígio, em suma, de ser um cortesão, é para este um fim em si. Ela constitui, segundo Elias, e no verdadeiro sentido do termo, o “público” do antigo regime.

Ciberespaço

  • 4 A este respeito, ver Paul Virilio, 1996.

12Actualmente, o “público” parece já não se reunir num espaço propriamente dito, especificamente físico, materializado numa esfera comum. Esta metamorfose resulta, em grande parte, da eliminação fenomenológica do espaço e da generalização do tempo – dialéctica que David Harvey sintetiza na expressão time-space compression (1989) – operada pelas tecnologias da informação. As tecnologias da mediação de massa ditaram o revés do “espaço” grego ou medieval, concreto e localizado e transformaram o mundo num campo único, no qual o capitalismo passou a poder actuar. Mais tarde, as novas tecnologias digitais, elevando ao paroxismo a dinâmica de interacção assíncrona, que não requer contacto directo, votando o corpo à redundância, viriam a culminar no desaparecimento desse espaço. A sociedade metamedia (Manovich, 2000), caracterizada pela convergência tecnológica, pela informatização das sociedades contemporâneas e as suas reticularidades, e pela emergência da computação ubíqua, ao potenciar a relação e a acção à distância, levou ao desvanecimento dos lugares em que os cidadãos se podem conhecer e falar face-a-face, comprometer-se e desafiar-se mutuamente. Este extravio do “espaço público” propriamente dito teve como reverso o surgimento de um “espaço” cibernético, desprovido de dimensões espaciais, e inscrito na temporalidade singular da difusão instantânea4.

13Haverá, decerto, uma tendência de liberdade, bem como potencialidades ao nível da partilha de informação, numa lógica bidireccional, contida nestes novos media. Alguns autores têm inclusive vindo a teorizar o seu potencial para reabilitar uma cultura de diálogo e discussão à escala planetária e para fomentar um empowerment, referindo-se ao poder acrescido que o utilizador aparenta ter não só no consumo, como agora também na produção de conteúdos na rede, o que facultaria um maior envolvimento e participação dos cidadãos e das colectividades na vida democrática, estimulando uma cidadania activa dominada por amadores criativos, provedores de uma cultura livre (Lessig, 2004). Porém, estes novos media são intrinsecamente dotados de um carácter ambivalente, pois a liberdade, a criatividade, e a permissividade coexistem com uma geopolítica de desordem, de anarquia e de caos (Ramonet, 1999) num espaço de informações superabundantes e sem ordem sequencial. Ainda, e ultrapassando a perspectiva meramente mediacêntrica, há que apontar problemas de monta inerentes à era electrónica, como a possibilidade de esta imensidão de conteúdos dispersos, sem estrutura, sem modelo de mediação e, não raras vezes, sem densidade e consistência, resultar num modo de comunicação verdadeiramente cacofónico, na dissolução dos referentes comuns, e na concomitante fragmentação do público.

  • 5 Sobre novos media e cidadania ver Sá, 2003.

14A pergunta que se impõe colocar é a de saber se as oportunidades de encontro têm nos novos media5 um bom “lugar” – digamo-lo assim –, um “lugar” de aprendizagem, e que permita a produção duradoura de uma vida social e cultural, que autorize forjar costumes, expectativas recíprocas e laços sociais significativos, em suma, que potencie que um público possa ser constituído e que uma opinião possa ser formada, mediante um processo sistemático de conversação e de confronto de argumentos. Ou se, pelo contrário, estes novos media transformam o publico num flash, numa intersecção ocasional, talvez mais próxima das características de multidão, regidas por linhas individuais, por respostas a impulsos vagos, e não por uma acção combinada, concertada.

15Na verdade, com este novo espaço, impregnado de virtualidade, os grandes conceitos agregadores como o de “grupo”, “comunidade”, “público” parecem encontrar-se num estado vacilante. Acompanhando este fenómeno de desterritorialização, o público virtualizou-se. Tendo perdido um certo “fundamento territorial”, passou a existir enquanto categoria sobretudo mental, como um conjunto de representações, ou um “nós” fluido por um sopro de pertença. Ele constitui-se com base numa imagem do público, uma imagem genuinamente ficcional.

16A partir desse momento, mais ou menos voláteis, os públicos fazem-se e desfazem-se ininterruptamente: não são uma realidade definida, mas uma realidade em movimento. E, por isso, fragmentação, ambivalência e plasticidade tornam-se as características-chave dos públicos modernos. A fugacidade parece, de facto, pautar o modus vivendi do público moderno. Senão vejamos: a navegação na Internet pode ser resumida a uma experiência visual, não raras vezes maquinal e distraída, de saltar de página em página, de conteúdo em conteúdo, de fotografia em fotografia, numa verdadeira “vadiagem do olhar”, para usar as palavras de José Machado Pais (2008). Há uma quase infinidade de caminhos abertos para continuar a encontrar novos prazeres visuais, os quais serão perseguidos por um observador ambulatório realizando escolhas frequentemente instintivas, pouco pensadas.

  • 6 A força totalizadora do ennui, vulgarmente traduzido por “tédio” ou “aborrecimento”, está sintetiza (...)

17Do mesmo modo, frente ao televisor, descobre-se um espectador agarrado freneticamente ao comando, e mudando compulsivamente de canal. Permanentemente insatisfeito, atingido pelo ennui – essa cedência à futilidade da vida que Baudelaire6 denuncia nas Flores do Mal (1857) –, o espectador encontra no zapping o derradeiro reduto de uma esperança de comprazimento. Magnetizado por uma “cultura imagética”, associada ao audiovisual, que muitas vezes não o apraz, mas de que não se esquiva, o espectador, depois de um televisionamento exaustivo, carece de tempo e de brio para saídas culturais; a frequência de exposições, museus e património em geral passou a estar quase circunscrita a roteiros de públicos turísticos e escolares. A procura do teatro, já de si diminuta, sofreu um ainda maior decrescimento. Mencione-se ainda a raridade distintiva das idas a espectáculos de dança, de ópera e a concertos de música clássica/erudita. O livro, por sua vez, encarado como mera hipótese de ocupação dos tempos livres, passou a ser um objecto intelectual mais dessacralizado, embora “ainda atravessado pela (alguma) importância simbólica de figurar na biblioteca pessoal ou familiar” (Conde, 1996: 122). Em detrimento do livro, a evolução da leitura tem priorizado jornais, mas sobretudo revistas, concretizando a ascensão da literatura a categoria pragmática, já que a leitura rotineira, de mera actualização, mais utilitária, instrumental e eventualmente fragmentada, se tende a substituir a uma leitura mais desinteressada, continuada e exigente.

18No que concerne o cinema, pode, efectivamente, teorizar-se a existência de um pequeno reduto de “público” mais erudito, que apresenta uma fidelização às obras e percursos de determinados realizadores, transmitidas num espaço que projecta filmes alternativos aos existentes no circuito comercial de exibição como, em Portugal, é o caso da Cinemateca, funcionando como mecanismo simbólico de diferenciação social. Para estes espectadores mais atentos e fiéis a determinada cinematografia, o visionamento de um filme surge como ensejo de encontro e de conversação, razão pela qual parece encontrar-se neste grupo algumas das características matriciais que o indiciam como “público”.

  • 7 Para uma descrição detalhada dos públicos do cinema consultar Freire, 2009.

19Todavia, a par deste “público”, verifica-se um conjunto cada vez mais alargado de espectadores esporádicos influenciados, sobretudo, pela divulgação de filmes veiculada pelos meios de comunicação social, através da publicidade, os quais se inscrevem num espaço de recepção que reenvia essencialmente para o entretenimento7. Estes “públicos do entretenimento” parecem movidos pela lógica sensacionalista do efémero, e, diferentemente do que acontece no “público”, nestes espectadores o vagar da saída e do encontro dissipou-se. Eles não evidenciam uma fidelização a determinada sala de exibição; frequentam, amiúde, um novo tipo de espaço resultante da fragmentação dos grandes cinemas em multi-salas, geralmente integradas em centros comerciais, onde as coisas adquirem a “qualidade de vitrina” (Simmel, 1903). O centro comercial, que tipifica a hipérbole, em virtude da concentração do conjunto de sensações e estímulos visuais, subverte a possibilidade de um olhar contemplativo, pois a capacidade do indivíduo para atribuir sentido ao enorme fluxo de imagens não acompanha a velocidade com que se apresentam à consciência. Face à hipertrofia da cultura objectiva, o indivíduo acha-se simultaneamente oprimido e contudo tentado pela amplitude da riqueza acumulada que ele não pode, todavia, assimilar. Neste divórcio entre a cultura objectiva e a cultura subjectiva radica aquilo a que Simmel designa como “a tragédia da cultura” (1988). A capacidade perceptiva do espectador fica algo paralisada, hipnotizada pela miríade de coisas que aí se encontram. O indivíduo que se descobre num centro comercial tem a sua atenção espartilhada por uma infinidade de coisas, e o seu olhar tende a flutuar, impassível e fascinado. É o olhar líquido dos públicos líquidos.

20É possível que estes espectadores de entretenimento experimentem ocasional e esporadicamente obras que tendem a ser visionadas pelo “público” erudito. Na verdade, acontece que a esfera cultural pode hoje ser concebida como uma fonte de sociabilidade, potenciadora de uma maior circulação das pessoas pelos lugares sociais (DiMaggio, 1987). Ela confere um leque amplo de possibilidades na construção do repertório de gostos, superando por conseguinte a inevitabilidade das heranças de habitus provenientes do círculo de relações familiares (Bourdieu, 1979) e facultando inclusive uma mobilidade social ascendente. Por conseguinte, parece poder dizer-se que os públicos se tornam improvisados, porque já não se formam dentro de um conjunto relativamente delimitado de posturas pensáveis, mas estão sempre a resvalar e a ser potenciados pelo visionamento imaginado de narrativas, por exemplo, dos meios de comunicação social (Appadurai, 2004). No entanto, é preciso frisar que um contacto meramente episódico com uma obra cultural distinta não é suficiente para converter estes visitantes num “público”.

21Face a estas novas temporalidades, velocidades, experiência de fluxos e obsolescência, o indivíduo contemporâneo está permanentemente envolvido numa multidão que é anónima, alheia às pequenas diferenças e distinções, às qualidades individuais. Estas multidões são fortuitas, errantes. Longe de um público, uno e singular, a experiência hodierna reveste a evanescência dos Flash Mobs, "multidões relâmpago” que se aglomeram de forma instantânea num local público e se dispersam tão rapidamente quanto se haviam reunido.

22Não significa isto que na actualidade tenha deixado de existir um público. Significa, sim, que a sua debilidade e a sua efemeridade relativizam a sua substância e a sua consistência: como faz notar Daniel Dayan (2000) deparamo-nos hoje com um “quase-público”. Na arte, como na cultura em geral, confrontamo-nos com a existência de visitantes, que mantêm um contacto meramente episódico com o objecto cultural, a par dos quais existe de facto o “público”, que pressupõe uma afluência recorrente. A distinção existe, pois, entre o “público”, assíduo, diligente, um público observante, reflexivo, crítico, e que debate colectivamente sobre a obra que experienciou, e o flash-público, o visitante que entra casualmente num museu, numa sala de cinema, que ouve um certo repertório de música ou que vê efemeramente um canal de televisão ou um site, mas que está de passagem, que vagueia numa digressão incerta, deitando sobre as obras um relance de olhos furtivo, ligeiro e desconhecedor, extremamente fluido, casual, não-sistemático, marcado pela plasticidade das paixões e dos sentidos, e com um intuito essencialmente consumidor de cultura.

  • 8 Nas democracias do pós-guerra as alterações que ocorreram na sociedade e nos media moldaram a comun (...)

23Este “flash-público” reflecte a condição de um público que, como argumentámos, se viu despojado de um certo fundamento espacial mas também dos próprios alicerces, terrenos ou metafísicos, que justificavam a sua reunião. A religião, que pretendia, como revela a sua etimologia, religare os cidadãos, tendeu a perder a supremacia absoluta de que gozava nas sociedades tradicionais, dando origem a um mundo emaranhado na sua organização e nas exigências que passou a colocar aos actores sociais, a quem é colocado o imperativo da racionalização. Paralelamente, o campo político, que, tradicionalmente, também motivava a associação dos cidadãos na esfera pública, tornou-se hoje eminentemente mediado e mediatizado, e converteu-se em motivo de segregação e celeuma. Amplamente transmutado, sobretudo pelo discurso mediático, num permanente exercício de intrigas e rumores, e centrado nos traços de personalidade dos políticos, este campo deixou de ser associado a uma real e afincada exposição e discussão de ideias, passando a estar orientado pelo raciocínio do horse race, da mera competição política. O advento daquilo a que Jay G Blumler e Dennis Kavanagh (1999) designam de terceira era da comunicação política8 resulta nalguma desafeição face aos governos democráticos, constatável pela diminuição pronunciada e continuada dos índices de participação e pelo declínio nítido da militância política. Do descentramento do universo religioso, que tinha uma função primordialmente aglutinadora, e do desprendimento para com a política, nasce o que Weber cunhou como o “mundo desencantado” da modernidade.

24No seio deste ateísmo social, a noção e a concretização espacial de uma assembleia de indivíduos que partilham e constroem uma experiência colectiva esbate-se como referência dominante da vida pública. O espaço público cede lugar a um processo de individualização na constituição das novas subjectividades. Esta mutação engendra uma certa “retribalização” em espaços domésticos intimistas, privilegiando questões de foro pessoal e imperativos como a subjectividade e a autonomia, e relegando para segundo plano as relações sociais em espaços colectivos. A título ilustrativo, enuncie-se o caso do hábito da televisão, que tendeu a secularizar – e sedentarizar – o ritual da ida ao cinema. Esta tendência de deslocamento do espaço público para a esfera privada verifica-se em vários campos, designadamente, no campo político. Nele, vemos emergir uma forma de actividade pública não partidária que brota do âmbito privado cívico, essencial para a democracia, por assentar num exercício da virtude cívica, mas que não se alicerça num modelo associativo, base fulcral de uma sociedade civil republicana. Ao invés, podemos falar da existência de uma coligação de cidadãos – mais do que de um “público” – estabelecida para lograr objectivos publicamente salientes, e a que podemos apor o qualificativo de privado público (Giner, 2005).

25Perante o desapego generalizado e a dissolução dos laços afectivos e sociais, é uma ética de auto-realização pessoal que tem vindo a ganhar primazia, a qual se espelha no aumento exponencial do consumo propiciado pelo mercado visto como condição capaz de conferir classe, status. O consumo passa a assumir-se como a categoria primordial de significação social, patenteado num sistema de equivalência recíproca entre o “ser” e o “ter”. O “consumismo conspícuo”, para invocar uma expressão de Thorstein Veblen, e que afecta todas as camadas sociais, imprime uma ainda maior pluralidade e fragmentação do espaço público, agora orientado para uma lógica de padronização de bens e serviços de estandardização e industrialização da cultura.

Mutações

26O desvanecimento de uma trama de lugares públicos onde os cidadãos possam debater e deliberar sobre a res pública e a correlativa exacerbação individualista resultam naquilo que Dewey designou como “eclipse do público”. Esse eclipse é, em grande parte, potenciado e reforçado pela hegemonia do campo dos media, palco de uma profunda mudança não só económica, com a constituição dos grandes grupos e o predomínio de um ethos comercial, mas também técnica, com a multiplicação e a diversificação dos canais.

  • 9 A este propósito ver Discovering the News: A Social History of American Newspapers (Schudson, 1978)
  • 10 Sobre capitalismo informacional, ver, entre outros, Schiller (1999) e McChesney et al (1998), e par (...)

27A produção mediática, em geral, e a jornalística, em particular, prevalecem subsumidas a uma lógica intensamente comercial. Foi no século XIX, com maior ênfase nas suas décadas finais, que ganhou pujança a industrialização da imprensa, sob a égide de uma comunicação para um público alargado. Surge então um novo tipo de notícia e um novo ideário para o jornalismo, que procura a objectividade e a sua autonomia enquanto profissão, ao mesmo tempo que irrompe fulgurantemente a publicidade, dando lugar a uma configuração do jornal como produto urbano, cultural e mercantil (Schudson, 1978)9. Em meados do século XX, com os meios áudio e audiovisuais de massas - a rádio e a televisão - inextrincavelmente ligados aos inícios do fenómeno do consumo alargado, a publicidade comercial reforça-se como fonte de sustentação financeira dos media e as técnicas de marketing estabelecem-se. Actualmente, esta tendência de acentuação de um capitalismo informacional10 não tem cessado de se intensificar com os novos media. Constitui-se assim uma nova ordem da informação, em que esta se vê convertida a uma nova matéria-prima da economia, já que o seu processamento e transmissão se tornaram fontes vitais da produtividade e do poder do negócio das indústrias culturais. Neste contexto, a esfera do económico arrastaria o processo societal de produção e gestão do conhecimento, e este ficaria de algum modo contido, limitado, pela lógica própria do sistema económico. Deste modo, ao mesmo tempo que canalizam expectativas e promessas de uma comunicação ao serviço de uma cidadania alargada, os media massivos seguem rumos não propriamente consentâneos com as aspirações do espaço público primogénito, imaginado sobre o argumento e a razão discursiva, fecundado pela confrontação pública de opiniões.

28Presididos por um ethos orientado para o mercado, nem sempre harmonizável com princípios de vida pública e com valores primaciais ao bem-estar colectivo, os media transformaram-se no “mini-preço das ideias” (Wolton, 1990: 11). Ao elegerem como objectivo primacial o de atrair novos públicos e maximizar os lucros, os media tendem a postergar a ética ancorada na responsabilidade social de contribuir activamente para efectivar um colectivo justo e consciente, guiado pela senda da acção colectiva, da vida pública e da cidadania.

29Idealmente fundados numa cultura ordenada e humanista, os media foram tradicionalmente concebidos como arena que animava o debate na esfera pública, estimulador da argumentação e da discussão racional, baluarte difusor de conhecimentos que fomentariam uma conversação esclarecida, a manutenção da memória colectiva e dos liames sociais. Porém, fruto da desregulada – e sublinho, desregulada - comercialização da informação e da preponderância do entretenimento com o objectivo de captar grandes receitas da publicidade e de atrair índices de audiências cada vez mais vastos, os media passariam a contribuir para o enfraquecimento do debate público racional convidando, ao invés, a reacções conformistas, instintivas e estetizantes, lesando assim a capacidade de os cidadãos pensarem criticamente o contexto em que vivem, e potenciando o efeito de espectacularização do público.

30No campo do jornalismo, observa-se o predomínio de uma simplificação dos conteúdos e um agudo aumento do infotainment, qual estratégia copiosa dos jornais para manter fieis e/ou atrair novos públicos. Tais conteúdos visam satisfazer simultaneamente os consumidores e os publicitários, o que favorece o esboroamento dos elevados standards legados do jornalismo clássico. A orientação para o mercado pode levar o jornal de referência - broadsheet – a abraçar os valores-notícia dos tablóides, nomeadamente ao privilegiar o popular sobre o pertinente, o excitante sobre o relevante, ao suprimir as hard news em favor das soft news, e ao atribuir primazia ao visível sobre o inteligível. Estas opções contribuem para o esbatimento do hiato que separava classicamente esses jornais e para secundarizar o tradicional padrão de responsabilidade que subjaz à actuação dos media. Os conteúdos informativos, amalgamados com entretenimento, passaram a deter um nível intelectual suficientemente baixo para chegar às audiências de massa, que constituem o grosso do mercado dos media, mas demasiadamente baixo para uma democracia que se pretende saudável. As perspectivas críticas salientam que o sincretismo que se desenha entre o jornalismo de referênciae o jornalismo tablóide, com a sua índole melodramática e a tónica na emoção e na sensação, pode resultar numa erosão da capacidade de discurso cívico, sendo cada vez mais difícil retirar do discurso jornalístico conhecimento concernente à vida social e com sentido de conduta ética. Diferentemente, esta contaminação converte o leitor num consumidor, um consumidor de imagens, um consumidor de produtos e de informação elementares, capazes de serem captados num instantes flash, já que se baseiam não nos argumentos racionais mas numa lógica sentimentalmente consumível.

31Esta crise do público, entendido no seu sentido filosófico iluminista, fora já diagnosticada por Jurgen Habermas. Este autor vê a perversão progressiva da esfera pública e chega a assinalar o seu declínio ao longo do século XIX, e sobretudo no século XX. A expansão quantitativa dessa esfera seria paradoxalmente acompanhada pelo empobrecimento qualitativo da mesma. Diferentemente da perspectiva de Dewey, fervoroso crente do poder dos media para fomentar o universo do discurso, Habermas antevê a tendência de crescente comercialização que perpassa os media truncar esse processo. À mercantilização dos media, aliar-se-ia a influência cada vez maior das técnicas de marketing e a crise do ideal burguês da publicidade (no sentido de tornar público), despromovida para a categoria de publicidade mediática (no sentido de propaganda), resultando numa conjuntura que estaria na origem de uma degenerescência do espaço público contemporâneo, traduzida pela transformação de um “público que discute a cultura num público que a consome” (Habermas, 1978: 183). Nesta óptica, a sociedade de massa que por essa altura começa a ganhar expressão caracterizar-se-ia por uma crescente desafeição pelos assuntos públicos, juntamente com representações hostis dos próprios representantes do poder político, traduzindo-se num progressivo afastamento entre o cidadão e a política. O espaço público ver-se-ia assim progressivamente debilitado, subvertido por um crescente consumismo passivo e alienante e pela mercadorização da informação, concretizando a “queda do homem público” que havia sido vislumbrada por Richard Sennett (1978).

32Na mesma linha de pensamento, Norbert Elias concluía que, em consequência da modernização, da comercialização, da urbanização e da centralização, as relações de dependência entre os monopolistas tradicionais e a massa dos não-privilegiados se foram paulatinamente alterando em favor dos últimos. À antiga “sociedade de corte” sucederia, progressivamente, o carácter radicalmente diferente da sociedade de massas burguesa, que atribui primazia aos contactos indirectos por intermédio do dinheiro e da mercadoria, baseando a sua existência nos seus capitais e na hipótese de uma actividade profissional lucrativa.

33Esta mutação que se opera no campo mediático continua a motivar afincadas críticas em autores contemporâneos, nomeadamente de Dominique Wolton, que, na sua obra Eloge du grand public (1990), descreve a televisão como objecto de preguiça intelectual, de conformismo crítico e de submissão às modas do momento. Wolton considera que a televisão para o grande público deve ser a forma televisiva por excelência, dado o potencial que lhe reconhece de vincular o conjunto da sociedade (Wolton não parece ter-se preocupado com o reverso de todo o poder técnico). Contudo, tendemos, na perspectiva deste autor, a vilipendiar a televisão pública, identificada com o controlo político e sinónimo de arcaísmo, e a celebrar a televisão privada que, sob a égide dos grandes grupos económicos, viu a multiplicação e a diversificação dos canais, com o efeito porém nefasto de fragmentar o público, gizando uma inexorável dualidade entre o reino da procura e o da oferta, entre o indivíduo e o público.

34Também Pierre Bourdieu (2001) desenha uma crítica contundente à televisão do nosso tempo, através do nexo, negativo, que estabelece entre a urgência e o pensamento; a televisão, segundo ele, seria desfavorável à expressão do pensamento, por apenas dar a palavra a fast-thinkers, pensadores que se considera pensarem, a velocidade acelerada, por “ideias feitas”, ideias banais, conformes, comuns que são instantaneamente aceites por toda a gente sem que o problema da recepção chegue sequer a colocar-se. No pólo oposto, o pensamento seria, por definição, subversivo. Mas este desenrolar-se do pensamento pensante está intrinsecamente ligado ao tempo. Um tempo que escapa à pressão da urgência. Paradoxalmente, os media actuais instigam à redução de todas as escalas de tempo à medida do acontecimento, venerando o imperialismo do instante, do directo, do “imediato”, o que faz com que a realidade se volatilize. Desprovido de tempo, e sendo gorada a partilha de valores comuns para descodificar e compreender, sensivelmente da mesma maneira, as informações que recebemos, o público pensante, crítico, racional entraria em letargia.

  • 11 Simmel observa a vida na metrópole, marcada pela aceleração geral do tempo, pelo constante moviment (...)

35Este movimento de comercialização evidenciado no sector dos media é também visível no campo da cultura, sobretudo em virtude da proliferação dos discursos que enfatizam uma ideia de democratização na oferta cultural, pois além dos discursos históricos, científicos e estéticos, os centros culturais – museus, exposições… - passaram a produzir discursos económicos destinados a estimular o consumo e atrair multidões procurando, por esta via, concorrer com outras formas de entretenimento e lazer e transformando indivíduos em consumidores. Os conteúdos mediáticos e as actividades culturais vêm assim reforçar a tendência da sociedade pós-moderna, impulsionada por um processo sistemático de personalização e de monetarização de todos os âmbitos da vida, originando um estilo de vida moderno que foi abundantemente estudado por Simmel (1903)11. Por conseguinte, o “público” tende a assumir cada vez mais uma interpretação de índole empírica, reflectida em perspectivas eminentemente quantitativas. Ele torna-se ainda o foco matricial de estratégias de gestão empresarial e da mudança tecnológica, sendo votado a uma categoria sócio-métrica e trabalhado como medida de aferição de sucesso económico e empresarial.

36A obsolescência do sentido filosófico do público, entendido como um colectivo de sujeitos activos na vida pública cívica e política, repercute-se inclusive numa profusão de conceitos que intentam substituir aquela noção, filosoficamente em estado periclitante. Nomeadamente, ao falar-se de públicos da televisão, é de notar a hegemonia da nomeação “audiência”, que, não sem contestação, se instituiu e institucionalizou. Mas trata-se de uma nomenclatura que comporta uma diferença fulcral, pois enquanto o público denota dimensões qualitativas associadas ao envolvimento colectivo com o acontecimento e entre os participantes, a audiência envia para perspectivas predominantemente quantitativas.

37Para além de “audiência”, outro conceito que tende a emparceirar com o de “público” é a terminologia do “espectador”. Com a entrada na época da imagem técnica a partir do século XIX, entramos também na do espectador que olha a sociedade como um conjunto de cenas, consagrando a “sociedade do espectáculo” teorizada por Guy Debord (1991 [1967]), onde o espectador procura deleitar-se com o consumo movediço de mercadorias desauralizadas.

38Já no ambiente dos media digitais, é a noção de “uso” que é mais afim da imensa variedade dos modos de envolvimento com os novos media. Impulsionados pelo “novo espírito do capitalismo” (Boltanski & Chiapello, 2007), proliferam os discursos que enaltecem a emergência de um utilizador interactivo, mais activo, mais interventivo, e até mais criativo. Pois a passagem da audiência de massa à audiência interactiva (Livingstone, 2003) promove a conversão do utilizador, que deixa de ser um mero receptor para passar a assumir-se como produtor de conteúdos.

39Com o enfraquecimento dos valores da interacção, do debate e da argumentação em regime de co-presença física, entra também em malogro a concepção iluminista de um público, guiado pelo ideal do uso público da razão, do intercâmbio de argumentos, da formação de uma opinião pública leitora que se traduzirá em representação política (Koselleck, 1988). Por conseguinte, é a própria consolidação democrática, e, em sentido mais amplo, a qualidade da democracia real, que se vê sistemicamente ameaçada, já que a cidadania social, política e cultural, entendida como participação convencional directa ou tácita na decisão colectiva já não é vivida como uma necessidade imperatriz, sendo actualmente encarada como obrigação que muitos cidadãos acatam de forma rotineira, não reflexiva e pouco ardente, ou que se negam, tout court, a cumprir.

Conclusão

40O conceito de “público” alterou-se radicalmente. Se, classicamente,o “público” conotava uma totalidade social específica com um ritual de encontro e de diálogo, qual metáfora ontológica de uma república una e indivisível (Fleury, 2006), o grupo que hoje designamos de “público” remete para um conjunto de indivíduos que deixou de evidenciar uma partilha de laços significativos unificadores e de estabelecer vínculos sociais fortes. Submergido num ambiente mediático que tem no seu âmago o indivíduo e o fenómeno zapping, espoletado por uma profusão alucinante de canais, plataformas, sites, e pelas novas estruturas rizomáticas, o público tornou-se “flash”. O momento da tomada de postura que constitui um público mais não é que a expressão de volição por parte dos seus membros. Ele já não se reúne num espaço comum. Não é um público que examina, vigia, pergunta, contradiz, opina, decide, julga, um público que exige de si…

41O “flash-público”, termo que implica evocar a sinergia entre os media tradicionais e os novos media e considerar a vigência de um tempo de desamparo social e de provisoriedade, coage também a pensar nas consequências dessa convergência, nomeadamente ao nível do reforço da evanescência dos públicos. Altamente mercantilizados, esses públicos são públicos da atenção instantânea, efémera, públicos epidérmicos, vagos, indefinidos.Neles já não ressoa a noção de cidadão, que acarreta o princípio de compromisso na vida pública, remetendo para o sentido de tornar visível, relevante para e de algum modo acessível a muitos, ou seja, situado fora do privado (Dahlgren, 2000). Em detrimento de uma acepção filosófica eminente de público que nomeava um conjunto de cidadãos, leitores, ou ouvintes, mas sobretudo participantes, portadores de um sentido de altruísmo, hoje, essa categoria que incluía “algo” que reportava o colectivo transformou-se num nome de certo tipo de agrupamento e já não tem como referência o colectivo como marca do que gera.

42Falar de “flash público” é falar de uma simulação do público, um público que perdeu o sentido de si mesmo como uma força activa e que já não se ajusta a uma categoria sócio-histórica. O conceito “flash público” deve, pois, ser lido como uma ironia. Mais até, como um paradoxo, por se situar nas antípodas do que é próprio ao conceito (clássico) de público. O “flash-público” representa uma subversão sociológica, uma concretização semanticamente reformada da ideia clássica de massas, de um pseudo-público desclassificado, voire même de um “contrapúblico” (Warner, 2008).

43O “flash-público” não passa de uma ficção prática, condição de indivíduos que se imaginam enquanto tal, mas que se divorciam da vivência e prática de uma cidadania genuína, comunicativa e participativa, alicerçada na máxima de cada um agir como uma pessoa pública, capaz de julgar e decidir, em condição de equidade e fraternidade e com base numa racionalidade ética, cívica e cultural. Utilizar, portanto, de forma indiscriminada e leviana o conceito de “público” é olvidar as diferenças cruciais que apartam a cultura da discussão da cultura do consumo.

Que relação o autor estabelece entre a urbanização e a ascensão?

Resposta: É direta a relação o autor estabelece entre migração e urbanização, sendo que a industrialização estimulava a migração para o Sudeste, enquanto que a migração alimentava o processo de industrialização.

Qual a diferença entre migração e urbanização?

Urbanização é o crescimento das cidades, tanto em população quanto em extensão territorial. É o processo em que o espaço rural transforma-se em espaço urbano, com a consequente migração populacional do tipo campo–cidade que, quando ocorre de forma intensa e acelerada, é chamada de êxodo rural.