Por que podemos afirmar que o Brasil não foi descoberto pelo português?

Em abril de 1500, depois de 45 dias de viagem, a esquadra de Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil – o fato ficou conhecido como o descobrimento do país. Entretanto, as terras brasileiras já eram ocupadas pelos povos indígenas. O professor Paulo Chaves contou no Projeto Educação, nesta quinta-feira (9), que a chegada dos portugueses, na verdade, foi uma invasão ao país.

Cabral chegou a Porto Seguro, na Bahia, com 13 embarcações, 1.400 homens entre marinheiros, técnicos em navegação, escrivães, cozinheiros, padres e ajudantes. Eles saíram de Portugal em busca das Índias, mas chegaram ao litoral sul baiano, no dia 22 de abril de 1500. Só desembarcaram no dia 23, quando descobriram que as terras não eram desabitadas. Cerca de 3 milhões de nativos, os índios, já viviam no Brasil.

Por que podemos afirmar que o Brasil não foi descoberto pelo português?
Portugueses não descobriram o Brasil, mas, sim, invadiram
(Foto: Reprodução / TV Globo)

“Isso descaracteriza a visão tradicional de que teria sido uma descoberta. Na realidade, Portugal não descobriu o Brasil, ele ocupou, invadiu, submetendo dessa maneira diversas nações indígenas. Se o Brasil já possuía uma população indígena, local, não se trata de uma descoberta, e sim de uma conquista. As comunidades se dividiam entre diversas nações, dentre as quais quatro grupos eram principais: os tupis, no litoral e parte do interior, os macro-jês  no norte da Bacia Amazônica; os aruaques, no Planalto Central; e os cariris, também na região Amazônica.

Algumas destas civilizações ainda viviam como no período paleolítico, produzindo apenas o que precisavam para se manter, sem excedente. “Algumas tribos tupis já estavam transitando do paleolítico, por isso produziam agricultura rudimentar, na chamada de roça branca, onde eram plantados mandioca, cará, feijão. Se essas comunidades não produziam excedentes, não tinha comércio entre eles”, destacou Paulo Chaves.

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A ausência de comércio não era o único ponto que diferenciava a vida dos índios e dos portugueses. As comunidades primitivas brasileiras não conheciam, até então, a escravidão. “Diferentemente dos africanos, que, quando em guerra, escravizavam, os inimigos dos índios eram submetidos à antropofagia, um canibalismo litúrgico. Essas comunidades acreditavam que, consumindo a carne do inimigo, estariam adquirindo suas virtudes, como coragem, destreza, habilidade de guerrilhas”, falou o professor.


Outro aspecto praticado era os infanticídios: quando nasciam gêmeos, os bebês eram sacrificados, pois eram considerados representações do bem e do mal. Mesmo sendo diferentes entre si, as civilizações primitivas do Brasil tinham muitos pontos em comum, como a pintura corporal, a dança e a música, com produção de instrumento de sopros, como flautas e apitos, e de percussão, como tambores e pandeirolas.

  • Mariana Alvim - @marianaalvim
  • Da BBC Brasil em São Paulo

12 maio 2018

Por que podemos afirmar que o Brasil não foi descoberto pelo português?

Crédito, Getty Images

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Mapa antigo, datado de 1870, mostra a América do Sul; período de expansão marítima de Portugal tem passado por revisão crítica

Ocorrida há séculos, a chegada dos portugueses a terras até então por eles desconhecidas, como o Brasil, voltou às páginas dos jornais - e das redes sociais - nos últimos dias envolta em polêmica. O debate gira em torno de uma palavra: descoberta.

Ela dá nome à série de conquistas territoriais pelos portugueses a partir do século 15, fatos mais conhecidos no Brasil como "descobrimentos". E, em um projeto eleitoral do hoje presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, estaria no nome de um novo equipamento cultural a ser criado na capital portuguesa, o "Museu da Descoberta".

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A proposta foi apresentada por Medina ainda em 2017, como parte do programa político com o qual ele concorreu ao cargo e venceu. O texto enumerava como uma das medidas "criar o Museu da Descoberta como estrutura polinucleada na cidade que inclua alguns espaços/museus já existentes e outros a criar de novo e que promova a reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza econômica, científica, cultural nos seus aspetos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura".

Mas, em abril, o jornal português Expresso publicou uma carta com as assinaturas de mais de cem pesquisadores de diferentes países, incluindo o Brasil, questionando o nome do museu planejado. O principal argumento é o de que uma instituição denominada desta forma representaria uma visão eurocêntrica deste período histórico.

"De início, estamos nos contrapondo à denominação, e não ao museu em si. Ao nomear, define-se a forma como a história será apresentada ao público. Neste caso, falar em 'descobrimento' representa uma visão histórica eurocêntrica. As terras conquistadas por Portugal já existiam, tinham sua própria história. Em vez de descobertas, elas foram invadidas, por vezes destruídas e palco para genocídios históricos, como o das populações indígenas no Brasil", afirmou em entrevista à BBC Brasil a professora Junia Furtado, historiadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e signatária da carta.

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Culpa e orgulho

Ainda segundo o manifesto, a escolha desse nome representaria "recorrer a uma expressão frequentemente utilizada durante o Estado Novo (português) para celebrar o passado histórico", algo que seria incompatível com "o Portugal democrático".

O Estado Novo marcou o período do regime autoritário que Portugal viveu de 1933 a 1974, sob o comando na maior parte do tempo de Antônio de Oliveira Salazar - o que faz esta fase ser conhecida também como "salazarismo".

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Monumento conhecido como 'Padrão dos Descobrimentos', em Lisboa; conquistas portuguesas do século 15 foram exaltadas da monarquia ao salazarismo

Mas, para o historiador português João Pedro Marques, ainda que as conquistas do país europeu naquele período tenham sido celebradas pelo salazarismo, esta valorização vem de ainda antes.

"Isso já era algo presente no final da monarquia e na República (proclamada em 1910). Na corrida à África (período em que o continente africano foi marcado por disputas e pela colonização por potências europeias), no final do século 19, evocou-se muito a história dos descobrimentos e o que seria uma vocação dos portugueses para se ligar a outros povos", diz Marques, para quem o nome do museu proposto não é um problema e gera disputas por motivos ideológicos.

"(A polêmica) é fruto da atuação de grupos de ativistas que querem injetar esse sentimento de culpa em Portugal", disse Marques em entrevista à BBC Brasil. "Esse período é algo extraordinário para a alma portuguesa".

Em 2015, durante um evento, Fernando Medina falou sobre o seu projeto e evocou o passado do país.

"No nosso país não temos muitas histórias para contar ao mundo, mas temos uma grande história única a contar e chegou o momento de dar a conhecer", disse, acrescentando que seu objetivo não era criar "um museu dos Descobrimentos, hegemônico", mas sim "um elemento que contribua para contar bem essa história".

A BBC Brasil tentou contato com Medina, mas a assessoria de imprensa da Câmara Municipal de Lisboa (CML) afirmou que não foi tomada qualquer decisão sobre o projeto do museu: "Quando houver alguma informação relativamente a esta questão, ela será divulgada pela CML".

Revendo a história

Enquanto isso, o nome do museu tem sido tema frequente de debates entre historiadores e nos veículos de imprensa. Alguns pesquisadores têm até mesmo proposto alternativas ao nome, como "Museu da Viagem", "da Expansão" ou da "Interculturalidade".

Para Laurentino Gomes, autor de best-sellers sobre a história do Brasil, tais contestações fazem parte de um "revisionismo histórico" que coincide, em Portugal, com dois processos históricos: a redemocratização, com a Revolução dos Cravos, em 1974, e a progressiva integração do país à comunidade europeia.

"Isso fez com que emergisse uma nova identidade portuguesa, que questiona o seu passado e se contrapõe profundamente à chamada história oficial propagada no período anterior, da ditadura salazarista. É sempre bom lembrar que a história é uma ferramenta de construção de identidade", escreveu Gomes, por e-mail, à BBC Brasil.

"O esforço de revisão histórica está, portanto, de acordo com um Portugal que busca se identificar cada vez mais com a Comunidade Europeia e seus valores, deixando no passado mitos e conceitos que os portugueses hoje julgam anacrônicos. Como resultado, acho que Portugal tem se tornando um país mais politicamente correto do que os seus vizinhos, tentando se ajustar ao discurso que fortalece a construção dessa nova identidade".

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Segundo escritor brasileiro, Portugal vem vivendo um 'revisionismo histórico' sobre seu passado

O escritor lembra, como outro exemplo deste revisionismo, protestos contra a colocação de uma estátua do Padre Antônio Vieira no largo Trindade Coelho, em Lisboa. O padre, que na homenagem aparece rodeado de três crianças indígenas, é visto por alguns portugueses como um defensor dos povos nativos, mas, por outros, como um representante de sua dizimação e da perpetuação da escravidão africana.

De acordo com Gomes, essa revisão também é observada no Brasil, onde a redemocratização tem papel fundamental.

"Há uma tentativa, sob o regime democrático, de desconstruir a narrativa da história oficial que imperou durante os períodos de ditadura e na qual se destacavam sempre os grandes feitos nacionais e seus heróis. Um exemplo desse revisionismo no Brasil envolve, por exemplo, o imperador Pedro I. Durante o regime militar, ele era celebrado como um herói marcial, como, por exemplo, no filme Independência ou Morte, de 1972, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. Era um Dom Pedro que estava de acordo com os ideais e a estética que os generais do regime militar queriam impor ao país numa época de Milagre Brasileiro e do lema 'Brasil, Ame-o ou Deixe-o'", diz o escritor.

"Com a redemocratização, Dom Pedro virou um herói bastante desqualificado, boêmio, mulherengo e de caráter duvidosos, como aparece no filme Carlota Joaquina e na série Quinto dos Infernos".

'Achamento'

Para Gomes, contestações ao uso da palavra "descobrimento" no Brasil ainda estão restritas aos círculos acadêmicos e à militância dos partidos políticos de esquerda, mas já se reflete nos livros didáticos.

Já a historiadora Junia Furtado diz que, na academia, tais debates remontam aos anos 80 e 90, em que novas correntes da historiografia inglesa e francesa influenciaram a produção brasileira. Ainda assim, segundo ela, as críticas não se refletiram, em 2000, na celebração no Brasil dos 500 anos da chegada dos portugueses ao país. Naquele ano, marcado por uma série de eventos sobre o fato histórico, a palavra "descobrimento" esteve por todo canto.

Entre os pesquisadores, alguns propõem novos termos, como, por exemplo, "achamento".

"A renovação da historiografia brasileira vem neste movimento da leitura dos ditos 'desclassificados'. Em contraposição à memória dos grandes feitos, dos heróis, passa-se a valorizar a história dessas populações. É pensar a história não de fora para dentro, mas de dentro para fora".