Gravidas podem trabalhar na pandemia

Publicado: 18 Fevereiro, 2022 - 08h30 | Última modificação: 18 Fevereiro, 2022 - 18h02

No mesmo dia em que o país voltou a registrar mais de mil mortes por complicações causadas pela Covid-19, a Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira (16), um projeto que obriga as mulheres grávidas já totalmente imunizadas contra a Covid-19 a voltarem ao trabalho presencial. As que ainda não se imunizaram totalmente ou que simplesmente não se vacinaram também podem retornar ao trabalho presencial, mas para isso precisarão assinar um termo de responsabilidade.

O texto do Projeto de Lei nº 2058/2021, de autoria do deputado Tiago Dimas (Solidariedade-TO), que havia passado pelo Senado Federal, muda a Lei 14.151/21 que garantiu o afastamento da gestante do trabalho presencial com remuneração integral durante a emergência de saúde pública do novo coronavírus.

A volta ao trabalho presencial das não vacinadas ou com imunização incompleta tinha caído no Senado durante a tramitação na Casa, mas, ignorando os riscos para as gestantes, os deputados derrubaram a decisão dos senadores.

Com a aprovação da nova lei, que deve ser sancionada pelo presidente negacionista Jair Bolsonaro (PL), a decisão da volta ao trabalho presencial da mulher grávida, estará nas mãos do empregador. Ele é quem decidirá se a mantém em trabalho remoto, esteja a gestante vacinada, ou não.

Muitos podem desconsiderar o fato de que as grávidas estão no grupo de risco da Covid-19, desprezando a saúde e até a vida dessas trabalhadoras. Segundo dados de novembro do ano passado do Observatório Obstétrico Brasileiro, o Brasil registrou um aumento de 217% no número de grávidas e puérperas, mulheres que tiveram filhos de 45 a 60 dias, mortas em decorrência da Covid-19 em 2021, se comparado a 2020.

Outro estudo, publicado em 2020, mostra que o Brasil é recordista em mortes de gestantes e puérperas que se contaminaram com a Covid-19.

A aprovação da volta ao trabalho presencial neste momento, derruba por terra todo o trabalho que a oposição fez para conquistar o direito à vida ao aprovar o direito de afastamento, critica a deputada Érika Kokay (PT-DF).

 “Hoje, se houver incompatibilidade da função da mulher grávida no home office ela recebe a licença maternidade, que foi uma conquista da oposição durante a tramitação da lei que permitiu a essas mulheres ficarem em casa. Com a mudança, quem não se vacinou basta assinar um termo de responsabilidade para voltar ao presencial, colocando em risco a sua saúde e dos seus colegas de trabalho”, diz Kokay.

A deputada ressalta que o perigo do projeto vai além dos riscos à saúde da trabalhadora, por permitir o negacionismo dos antivacinas nesse grupo de risco. Ela cita o artigo 7º do projeto que diz que a não vacinação é “uma expressão do direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual, e não poderá ser imposta à gestante que fizer a escolha pela não vacinação qualquer restrição de direitos em razão dela”.

Para a oposição, colocar em uma lei como direito fundamental uma pessoa não querer se vacinar, contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que derrubou um decreto do Ministério do Trabalho, que proibia a demissão de trabalhadores não vacinados.

Os partidos de oposição PT, PC do B, PSOL e PSB já se articulam para entrar com uma ação no STF contra a decisão da maioria governista na Câmara que aprovou o projeto de acordo com a visão negacionista de Bolsonaro.

Veja o que muda

De acordo com o projeto, a empregada grávida dever retornar à atividade presencial nas seguintes hipóteses:

  • encerramento do estado de emergência;
  • após a vacinação, a partir do dia em que o Ministério da Saúde considerar completa a imunização;
  • se ela se recusar a se vacinar contra o novo coronavírus, com termo de responsabilidade; ou
  • se houver aborto espontâneo com recebimento do salário-maternidade nas duas semanas de afastamento garantidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Fonte: Agência Câmara

Gravidas podem trabalhar na pandemia

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 14.151/21 assegurou o afastamento das empregadas gestantes, durante a emergência de saúde pública do coronavírus, que deveriam permanecer em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância.

O objetivo da lei é proteger a mulher e a criança e, ao mesmo tempo, assegurar a continuidade do trabalho e do emprego.

O PL 2.058 modifica a lei e assegura o afastamento somente quanto a empregada gestante não tenha sido totalmente imunizada.  A regra do Ministério da Saúde atualmente considera a pessoa imunizada com duas doses1.

A nova lei inverte a garantia, no caso de empregada gestante imunizada. Em outras palavras, a lei retira da empregada gestante o direito de permanecer em trabalho remoto, teletrabalho ou trabalho em domicílio. A empregada gestante deverá retornar:

a)  após o encerramento do estado de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2;

b)  após sua vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2 (atualmente, duas doses);

c)  mediante opção individual pela não vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2 que lhe tiver sido disponibilizada, conforme o calendário divulgado pela autoridade de saúde e mediante termo de responsabilidade.

Análise de cada hipótese

a) Após o encerramento de emergência do coronavírus:

  • Nesta hipótese não há prejuízo para a empregada gestante, estando assegurada a sua permanência em teletrabalho, trabalho em domicílio ou remoto.

b) Após a vacinação em duas doses:

  • Os índices atuais de contaminação revelam risco potencial de exposição da gestante e da criança. Estudos estatísticos têm revelado maior incidência de infecção em mulheres grávidas2. Esses estudos indicam a necessidade de preservação da vida e da saúde como princípios constitucionais fundamentais.
  • A hipótese é muito semelhante àquela analisada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 5.938, que discutia alteração advinda da "Reforma Trabalhista" no caso de trabalho insalubre:

"Sob essa ótica, a proteção da mulher grávida ou da lactante em relação ao trabalho insalubre caracteriza-se como importante direito social instrumental protetivo tanto da mulher, quanto da criança, pois a ratio das referidas normas não só é salvaguardar direitos sociais da mulher, mas também efetivar a integral proteção ao recém-nascido, possibilitando sua convivência integral com a mãe, nos primeiros meses de vida, de maneira harmônica e segura e sem os perigos de um ambiente insalubre, consagrada, com absoluta prioridade, no artigo 227 do texto constitucional, como dever inclusive da sociedade e do empregador. A imprescindibilidade da máxima eficácia desse direito social, proteção à maternidade, portanto, também decorre da absoluta prioridade que o art. 227 do texto constitucional estabelece de integral proteção à criança, inclusive, ao recém-nascido."

A máxima eficácia dos princípios fundamentais, no caso a saúde e a preservação da vida, leva necessariamente à prudência, ou seja, a manutenção do afastamento, seja pela proteção da mulher grávida, seja pela "absoluta prioridade da proteção à criança, inclusive ao recém-nascido", nos termos do art. 227 da Constituição federal. Existe alto risco de contaminação nas atividades presenciais nesse momento da pandemia e o aumento na taxa de mortes de gestantes deixa claro o risco de vida para as mulheres grávidas.3

c) Mediante opção individual pela não vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2:

  • Essa é a hipótese mais abertamente inconstitucional. Primeiro porque, nesta hipótese, exige manifestação individual da empregada gestante, incompatível com as garantias de proteção de saúde pública (risco para si, para a criança e para outrem);
  • a saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas. Conforme julgamento do STF da ADI nº 6.586, a vacinação compulsória deve ser implementada por meio de medidas indiretas, como restrição ao exercício de atividades ou à frequência de lugares.

Alterações de função e custeio pela Previdência Social

Para o fim de compatibilizar as atividades desenvolvidas pela empregada gestante, o empregador poderá, respeitadas as competências para o desempenho do trabalho e as condições pessoais da gestante para o seu exercício, alterar as funções por ela exercidas, sem prejuízo de sua remuneração integral e assegurada a retomada da função anteriormente exercida, quando retornar ao trabalho presencial.

Na hipótese de a natureza do trabalho ser incompatível com a sua realização em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, a empregada gestante terá sua situação considerada como gravidez de risco até completar a imunização e receberá, em substituição à sua remuneração, o salário-maternidade.

A lei atende ainda à demanda empresarial quanto ao custeio da remuneração das trabalhadoras afastadas do trabalho presencial, atribuindo à Previdência Social o pagamento na condição de gravidez de risco.

Conclusão

Como se vê, a máxima eficácia dos princípios fundamentais, no caso a saúde e a preservação da vida, leva necessariamente à prudência e à manutenção do afastamento de grávidas dos ambientes de trabalho, seja pela proteção das mulheres, seja pela "absoluta prioridade da proteção à criança, inclusive ao recém-nascido", nos termos do art. 227 da Constituição federal.

A exigência de manifestação individual da empregada gestante que se nega a se vacinar também é inconstitucional e incompatível com as garantias de proteção de saúde pública, o que pode levar ao ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

As gestantes que tiverem suas atividades modificadas em desrespeito às competências de sua função e às suas condições pessoais também poderão buscar a Justiça para ter seus direitos assegurados.

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1 Segundo o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19, que pode ser acessado por meio do link: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/guias-e-planos/plano-nacional-de-operacionalizacao-da-vacinacao-contra-covid-19.pdf/, a imunização completa consiste em duas doses da vacina, ou seja, as demais doses são tratadas como reforço.

2 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/podcast-e-tem-mais-discute-fatores-de-risco-da-covid-19-na-gravidez/ . Acesso em 23/02/2022.

3 Disponível em: Covid-19: Taxa de mortes de gestantes em 2021 já é 111% maior do que no ano passado - Revista Crescer | Gravidez (globo.com). Acesso em 20/02/2022.