A inversão da ordem de inquirição das testemunhas sempre causa nulidade

Em audiência de instrução e julgamento, o fato de o juiz interrogar as testemunhas antes de os advogados o fazerem não caracteriza teratologia — a não ser que se demonstre o prejuízo dessa inversão. Esse foi o entendimento da maioria da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal em julgamento nesta terça-feira (28/4).

A inversão da ordem de inquirição das testemunhas sempre causa nulidade
Artigo 212 do CPP não veda que juiz possa fazer inquirição prévia, afirma Moraes
Nelson Jr. / SCO STF

O caso trata de um acusado por extorsão mediante sequestro, organização criminosa e lavagem de dinheiro. A defesa pedia a nulidade pelo descumprimento do artigo 212 do Código de Processo Penal, segundo o qual "as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida".

O advogado Alberto Zacharias Toron defendeu, em sustentação oral, que a letra da lei é clara, no sentido de que as partes é que iniciam a inquirição. Citando diversos precedentes do STF, afirmou que a inversão da ordem quebra a lógica do processo legal. Para ele, em sendo assim, há uma "pretensão nua, crua e afrontosa de não seguir os termos da lei. Isso não pode vigorar!".

Já a Procuradoria-Geral da República sustentou que "a liturgia da ordem das coisas não pode ser uma camisa de força para afastar a direção do juiz no processo". Além disso, alegou que só é caracterizada nulidade se houver prejuízo. 

Já Toron rebateu o argumento dizendo que "é sempre uma porta larga no qual se evita a nulidade".

Voto vencedor
No julgamento, venceu o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes, seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. Para eles, quando o artigo 212 foi alterado em 2008, o objetivo era evitar que todas as perguntas fossem feitas pelo juiz.

De acordo com Moraes, não há teratologia ou ilegalidade para possibilitar a suspensão do processo no caso concreto, porque a alteração da ordem não afronta o contraditório. "O artigo 212 do CPP não veda que juiz possa fazer inquirição prévia."

Da mesma forma, o ministro Barroso afirmou não vislumbrar vícios ou o prejuízo com a ordem da inquirição. Além disso, afirmou que o artigo buscou "acabar com modelo arcaico em que toda inquirição tinha que passar pelo juiz". Para ele, a pretensão da mudança normativa foi adotar o cross examination do direito americano, em que a parte pode se dirigir diretamente a testemunha. 

Ele fez ainda a ressalva de que, acima de tudo, o juiz "deve ter urbanidade, ser cordial com partes e testemunhas e ser respeitável com o advogado".

Moraes e Fux também apontaram que o Habeas Corpus foi impetrado contra decisão monocrática e que haveria outros instrumentos para questionar a decisão. 

Fux afirmou que o problema em questão "não é de contraditório, mas sim de cumprimento de devido processo legal". No entanto, disse ser contra "uso epidêmico do Habeas Corpus" e seguiu a divergência afirmando que respeitaria a jurisprudência construída na Corte.

Vencidos
Relator do processo, ministro Marco Aurélio já havia suspendido o processo em decisão liminar. Nesta terça, ele afirmou que se tratava de um caso emblemático e foi contra a  inobservância do artigo 212. "O artigo não existe apenas para se fazer de contas, mas sim para ser observado", afirmou.

Ainda segundo o ministro, o Habeas Corpus é cabível caso se trate de ato individual ou colegiado. Quanto à parcialidade da magistrada, o ministro reafirmou que o fato de conduzir a audiência, "muito embora se mostre agressiva, o desentendimento com advogado não leva à presunção do excepcional. E é a parcialidade do estado-juiz".

O voto foi acompanhado pela ministra Rosa Weber, que entendeu que a juíza inquiriu diretamente as testemunhas e descumpriu o artigo 212. A ministra votou ainda para conceder ordem, de ofício, para efeito de repetição da audiência de inquirição de testemunhas. 

HC 175.048

03 de Maio de 2012

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Direito Processual. Ameaça. Violação de domicílio. Perturbação do sossego. Inversão na inquirição de testemunha. Nulidade sanável. (Não) demonstração do prejuízo pela parte. Revelia. Ausência de intimação pessoal. Nulidade ab initio.

“(...) Não demonstrado o manifesto prejuízo sofrido pela defesa do paciente, decorrente da inversão na ordem de oitiva das testemunhas de defesa e acusação, não há nulidade a ser reconhecida por via de habeas corpus. Portanto, indefiro a ordem, nesse ponto (...) É evidente o prejuízo sofrido pelo paciente que foi impossibilitado de exercer o seu direito de defesa por meio do interrogatório (autodefesa), sendo-lhe, ainda, decretada a revelia. –  A decretação da revelia imprescinde da intimação pessoal do réu (art. 367 do CPP). – Não tendo o Oficial de Justiça encontrado o paciente em um dos dois endereços constantes no mandado de intimação (....), cabia-lhe diligenciar no segundo endereço. – Como o Oficial de Justiça não certificou que o paciente encontrava-se em local incerto e não sabido, cabia ao Juízo a quo redesignar o interrogatório dele para o mês seguinte, por exemplo – tempo razoável para que o paciente retornasse de uma viagem de férias –, oportunizando a sua regular intimação pessoal e exercício do direito de defesa. – Parecer da PGJ pelo conhecimento parcial e concessão da ordem. – Ordem conhecida e parcialmente concedida” (Ementa não oficial). (TJSC – 4.ª Câm. Crim. – HC 2012.005953-6 – rel. Carlos Alberto Civinski  – j. 22.03.2012 – public. 08.03.2012 – Cadastro IBCCRIM 2757).

Pesquisadora: Chiavelli Facenda Falavigno

Anotação: Neste habeas corpus, a defesa visava à anulação da ação penal por dois motivos diferentes: 1) a realização da oitiva de testemunhas arroladas pela defesa antes daquelas arroladas pela acusação; e

2) o vício na intimação (notificação) para o comparecimento do paciente para seu interrogatório.

Quanto ao primeiro motivo para anulação, o tribunal repetiu o que tem sido a tônica amplamente majoritária da jurisprudência: a inversão da ordem de oitiva das testemunhas prevista no art. 400 – no caso, as arroladas pela defesa foram ouvidas em carta precatória antes das arroladas pela acusação – é nulidade relativa, a exigir prova do prejuízo (ver, por exemplo, caso em que não se comprovou o prejuízo: STJ, 5.ª T., HC 167.900, rel. Jorge Mussi, j. 27.09.2011, DJe 13.10.2011; recentemente, deferiu-se liminar para corrigir a inversão prejudicial ao réu: STJ, HC 225.757, Rel. Sebastião Reis Júnior, decisão monocrática de 17.11.2011, DJe 23.11.2011).

Trata-se de entendimento que amesquinha o devido processo legal (art. 5.º, LIV, da CF). A ressalva feita pelo art. 400 (“Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. (Redação dada pela Lei 11.719, de 2008)” – destaques nossos). diz respeito à produção de prova audiência, e não à ordem das oitivas, por um motivo simples: permitir que, no processo penal, ouça-se antes uma testemunha arrolada pela defesa do que uma arrolada pela acusação fere de morte os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5.º, LV, da CF), na medida em que impede que aquele que deve ter a possibilidade de reagir à imputação fale – e, neste caso, produza prova – por último.

Se as testemunhas arroladas pelo acusado serão aptas a refutar o que as indicadas pela acusação falaram (ou falarão) é problema de outra ordem, que, com todo o respeito, não deveria ser levado em consideração para a verificação do dano causado à defesa (no mesmo sentido, de que a inversão sempre importa em nulidade, ver: Santos, Leandro Galuzzi dos. Procedimentos.In: Moura, Maria Thereza Rocha de Assis (coord.). As reformas no processo penal. As novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 331). É que as formas, tais como previstas nos mais diversos ordenamentos, servem para proteger o indivíduo do arbítrio estatal, fazendo valer os princípios constitucionais em seu favor (Binder, Alberto M. O descumprimento das formas processuais.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, 4. p. 41-42).

O entendimento aqui criticado, que permite a flexibilização do processo em detrimento do que foi claramente pensado para ampliar a defesa, deixa o imputado mais vulnerável, porque torna subjetivo algo que deveria ser, segundo o texto da lei e a lógica imposta pelo contraditório e pela ampla defesa, absolutamente objetivo. Além disso, a prática judiciária, num país em que os atos processuais são, em razão do acúmulo de serviço dos juízes (e de diversas outras causas), praticados com extrema lentidão, chega a ser incompreensível: determina-se a realização de uma audiência fora da ordem legal para, depois, verificar se ela poderá ou não ser utilizada. É o cúmulo da ineficiência e desperdício de trabalho (caro, caríssimo), tanto do Judiciário, quanto do MP e, para piorar, muitas vezes com custo para o acusado, da defesa.

Não bastasse, tal posicionamento parece ignorar que o destinatário do processo penal no Brasil é, majoritariamente, o pobre, que raramente tem acesso pessoal ao seu defensor (geralmente público ou dativo). Com esse acesso já reduzido ou inexistente (ao menos antes da resposta à acusação, momento em que se arrolam as testemunhas, isso tem sido a regra), é evidente que a possibilidade de realização de uma defesa efetiva, com a indicação de pessoas importantes para testemunhar, é mínima. Nesse contexto, flexibilizar – como se tem flexibilizado – ainda mais o já combalido direito de defesa do acusado chega a ser cruel. E as consequências, num país em que a exceção parece ter como sina se tornar regra – inquéritos nunca duram 10 dias (art. 10 do CP); processos raramente são encerrados em 60 dias (art. 400 do CPP), aproximadamente 40% dos presos são cautelares... – são óbvias: o evidente e reiterado desrespeito à ordem da oitiva de testemunhas já é uma realidade.

Por fim, nunca é demais lembrar que uma simples troca de ofícios entre deprecante e deprecado solucionaria o problema de inversão da ordem das oitivas. O pragmatismo ilógico e ineficiente dos juízes de primeiro grau – chancelado pelos nossos Tribunais – não tem razão de ser. O exemplo da diligência e do cuidado do STF na Ação Penal Originária 470 (rel. Min. Joaquim Barbosa) indica que não presta o argumento da “dificuldade” em se fiscalizar o cumprimento de cada carta precatória.

Quanto ao segundo ponto, esclarece o acórdão que, diante de certidão em que constou não ter sido o paciente encontrado para ser notificado a comparecer para interrogatório, o magistrado decretou-lhe a revelia e deu seguimento ao processo. Ponderou-se que, 1) existindo outro endereço, o acusado deveria ter sido lá procurado – motivo de imprestabilidade do trabalho do oficial de justiça tal como entregue – e 2) a “revelia”, segundo disposição expressa do CPP (art. 367), parte do pressuposto de que houve ciência pessoal do ato – o que, aqui, não existiu.

Nessa medida, a decisão de anular por completo a audiência realizada sem a presença do acusado foi, à luz do devido processo legal, a mais correta: só com o seu adequado chamamento poderia ele decidir se reagiria exercendo o direito de presença e a autodefesa, faces da constitucionalmente prevista ampla defesa.

Andre Pires de Andrade Kehdi
Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM.
Membro do IDDD e do IBCCRIM.
Advogado.

Por que a inversão da ordem de oitiva das testemunhas caracteriza nulidade?

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que a nulidade decorrente da inversão da ordem do interrogatório – prevista no artigo 400 do Código de Processo Penal (CPP) – é relativa, sujeita à preclusão e demanda a demonstração do prejuízo sofrido pelo réu.

Qual a ordem de inquirição das testemunhas?

De acordo com o disposto legal, primeiro as partes interrogam as testemunhas e após isso, o magistrado formula as perguntas para esclarecer algum fato. Ou seja: o magistrado pode perguntar apenas depois das partes e não iniciar a inquirição. Se as testemunhas são de acusação, o promotor de justiça inicia a inquirição.

É proibido em qualquer hipótese a inversão da oitiva de testemunhas de autor e réu sob pena de nulidade?

Se não for demonstrada a existência de efetivo prejuízo à defesa, é válida a inversão de ordem da oitiva de testemunhas quando se trata de carta precatória.

Como funciona a inquirição de testemunhas?

A inquirição das testemunhas, por sua vez, há de ser feita diretamente pelas partes, devendo o juiz evitar que sejam feitas perguntas que induzam a resposta, que não tenham relação com a causa ou que importem em repetição de questão já feita (art. 212, CPP).