Quando foi aprovada a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural?

A Convenção da UNESCO, aprovada em 1970, é um instrumento legal proeminente no combate à pilhagem e ao tráfico ilícito. Ao estabelecer os princípios de responsabilidade compartilhada e igualdade cultural, ela também abriu o caminho para o direito dos povos ao seu próprio patrimônio cultural.

Vincent Négri
Pesquisador do Institut des sciences sociales du politique (ISP), do Centro Nacional para Pesquisa Científica da França (CNRS) e da École Normale Supérieure, Paris-Saclay.

Alguns ideólogos, defensores do liberalismo desenfreado, viram a afirmação de uma forma de nacionalismo cultural nas disposições da Convenção de 1970 da UNESCO.  Suas limitações também foram enfatizadas. Não há dúvida de que a Convenção tem dificuldades para criar um sistema equilibrado que garanta a devolução dos bens culturais exportados ilegalmente. Como não tem efeito direto sobre as leis internas dos Estados, ela é enfraquecida pelo princípio da territorialidade das leis – ou lex rei sitae [a lei do país onde a propriedade se situa]. 

Segundo esse princípio, o juiz considera a legislação do Estado onde se encontra o objeto cultural no momento da reivindicação, em detrimento da legislação mais favorável no Estado de origem do bem. Existe a tentação de se concluir que esse texto é, portanto, impotente, do que seria um sintoma a aprovação, em 1995, da Convenção UNIDROIT, que trata especificamente da restituição de objetos culturais roubados ou exportados ilegalmente.

No entanto, seria um equívoco limitar a Convenção de 1970 a uma interpretação estritamente jurídica e mecanicista de suas disposições. A contribuição teórica dessa Convenção vai além de suas inadequações mecânicas. Como pilar de uma ordem cultural internacional que se consolida de forma contínua, ela efetivamente constitui a base para os princípios da solidariedade e da responsabilidade coletiva para proteger o patrimônio dos povos. O Artigo 9º da Convenção estabelece as condições para a prevenção de danos irremediáveis ao patrimônio cultural em risco, devido à pilhagem de materiais arqueológicos ou etnológicos.

São esses princípios de responsabilidade compartilhada e equidade cultural que marcam a contribuição do instrumento internacional para o direito dos povos de desfrutar sua própria cultura. A Convenção se estabeleceu como uma matriz, com base nos princípios que a fundamentam. Entre tais princípios está a ideia, estabelecida no preâmbulo, de que “os bens culturais constituem um dos elementos básicos da civilização e da cultura dos povos, e que seu verdadeiro valor só pode ser apreciado quando se conhecem, com a maior precisão, sua origem, sua história e seu meio ambiente”.

Uma nova ordem cultural internacional

Com isso, a Convenção produziu uma doutrina para a restituição dos bens culturais a seus países de origem. Como consequência, uma declaração conjunta assinada em 1998 pela Itália e pela Líbia pôs fim à disputa sobre os bens culturais retirados do solo líbio durante a experiência colonial italiana na região da Tripolitânia, no início do século XX. Isso foi feito colocando a restituição desses objetos culturais à Líbia sob os auspícios da Convenção de 1970 – embora esta não pudesse ser aplicada, por não ser retroativa.

Nesse caso específico, não são mencionados os mecanismos jurídicos e institucionais da Convenção, mas, sim, a doutrina sobre a legitimidade da restituição dos bens culturais que ela impôs de forma gradual. Nesse sentido, a aprovação da Convenção de 1970 – dez anos após a  Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais pela Assembleia Geral das Nações Unidas – marcou um ponto de inflexão. Ela deu início a uma ordem cultural internacional, da qual derivou o direito à soberania cultural.

As premissas disso foram estabelecidas no Artigo 2º da Declaração de 1960, que afirma que “todos os povos têm o direito de [...] livremente determinar o seu estatuto político e buscar livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.

Nessa construção de uma nova ordem cultural internacional, a Convenção de 1970 é o dispositivo ou mecanismo que fundamenta o controle da circulação dos objetos culturais e consolida o princípio de sua restituição aos países de origem. O mercado de arte, que até então era amplamente isento de obrigações éticas, passou a estar sujeito a regulamentações mais rígidas sobre a procedência dos bens culturais. 

Quanto aos museus, o documento Ethics of Acquisitions (Ética das Aquisições, em tradução livre), publicado pelo Conselho Internacional de Museus  (ICOM), lembrava, já em 1970, que “deve haver uma documentação completa, clara e satisfatória em relação à origem de qualquer objeto a ser adquirido. Isso é tão importante para um objeto habitualmente classificado na categoria de arte quanto para um objeto de arqueologia, etnologia ou história nacional e natural”.

Tal pensamento é endossado nas Diretrizes da Associação Americana de Diretores de Museus de Arte (American Association of Art Museum Directors – AAMD), que articula a intensidade da obrigação de devida diligência para verificar a procedência de bens culturais – com base no fulcro de 1970.

O direito das culturas a serem diferentes 

Atualmente, a Convenção de 1970 é reforçada pelo conceito de diversidade cultural proposto pela Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada em 2005. O conceito de diversidade amplia o direito a ser diferente, que é o corolário do direito ao patrimônio.

No campo dos direitos culturais, isso significa que os Estados reconhecem sua capacidade de afirmar sua própria identidade no âmbito de suas competências soberanas. Estas se baseiam em direitos universais igualitários e, para comunidades ou grupos sociais, a concessão de direitos diferenciados – para compensar por uma história traumática, resultante da assimetria das relações coloniais, por exemplo.

Nesse contexto, lembremo-nos das palavras do filósofo alemão Walter Benjamin, que, em 1940, escreveu o seguinte: “Não há documento de civilização que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie. E, assim como tal documento não está isento de barbárie, a barbárie também contamina a maneira como ele é transmitido de um proprietário para outro”. Os princípios de responsabilidade compartilhada e equidade cultural, estabelecidos pela Convenção de 1970, também desempenham um papel nesse reconhecimento das culturas – em sua historicidade, diferenças e valores.

Respeito pelas singularidades 

Longe de ser um instrumento do nacionalismo cultural – como algumas pessoas de visão estreita gostariam de sugerir –, a Convenção estabelece a universalidade e a diversidade das culturas. Isso é ainda mais verdade considerando que, nos últimos 20 anos, ocorreu uma mudança no centro de gravidade do direito cultural internacional, ao se promover o papel e a função das comunidades. Essa evolução caminha lado a lado com a ideia de que cada pessoa somente pode aceitar e reconhecer o paradigma da universalidade se for reconhecida em sua própria identidade, com base na sua cultura e no seu patrimônio – uma identidade que a diferencia dos outros e a vincula à universalidade.

Dessa forma, a diversidade cultural assegura um pluralismo de afiliações particulares e o respeito a essas particularidades. É uma fonte de adesão às particularidades e à aceitação das diferenças – o foco no “respeito e apreciação mútuos entre nações”, mencionado no preâmbulo da Convenção de 1970.

O mesmo preâmbulo enfatiza o aprofundamento do conhecimento da civilização humana, o enriquecimento da vida cultural de todos os povos e um senso de respeito e estima mútuos. É também o caminho em direção a essa universalidade – com base no reconhecimento da diversidade das culturas, iniciado pela Convenção da UNESCO, aprovada em 14 de novembro de 1970.

Leia mais:

The Return of the Aksum Obelisk. The UNESCO Courier, Jul. 2008.
A Plea for the return of an irreplaceable cultural heritage. The UNESCO Courier, Jul. 1978.
Return to the homeland: entire regions have been deprived of their cultural past. The UNESCO Courier, Jul. 1978.

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Quando foi aprovada a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural e o que ela representa?

A Convenção da UNESCO, aprovada em 1970, é um instrumento legal proeminente no combate à pilhagem e ao tráfico ilícito. Ao estabelecer os princípios de responsabilidade compartilhada e igualdade cultural, ela também abriu o caminho para o direito dos povos ao seu próprio patrimônio cultural.

O que diz a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural?

A Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, afirma que “a diversidade cultural é tão necessária para a humanidade como a biodiversidade para a natureza”, reconhecendo, pela primeira vez, a Diversidade Cultural como “herança comum da humanidade”.

Qual é o conceito de cultura que a Declaração Universal da UNESCO 2002 apresenta?

Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os sistemas de valores, as tradições e ...

Qual a data foi escolhida para celebrar o Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o desenvolvimento?

21/05: Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento. Celebramos neste sábado, dia 21 de maio, o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, data que foi instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2002.