Quais os produtos mais comercializados pelos europeus durante as Grandes Navegações?

Nos últimos séculos da Baixa Idade Média, a Europa sofreu um conjunto de transformações que marcou sua entrada para o período moderno. Os conflitos e epidemias que tomaram o Velho Mundo foram seguidos por um lento processo de recuperação das atividades comerciais entre os séculos XIV e XV. Um dos principais locais de negociação era a Índia, lugar em que eram encontradas em grande quantidade as tão cobiçadas especiarias.

Inicialmente, as mercadorias da Índia chegavam por rotas marítimas e terrestres. Contudo, os mercadores europeus não tinham a oportunidade de empreender negócio diretamente com os comerciantes indianos. Para alcançar as desejadas especiarias, precisavam se submeter ao monopólio comercial exercido pelos árabes, que na época controlavam o Mar Mediterrâneo, ou realizar imensas caravanas que, no caso dos mercadores italianos, alcançavam as regiões do Beirute e do Líbano.

Em geral, as especiarias tinham grande presença na culinária e na medicina européia. Em meio ao surgimento da classe burguesa e o restabelecimento da classe nobiliárquica, os temperos e sabores vindos da Índia propiciavam uma experiência sensorial inédita aos paladares medievais. O acesso a esses produtos, além de oferecer uma condição de vida mais confortável, acabou se transformando em um elemento que poderia distinguir a elite dos demais.

Se a situação já não era muito favorável da forma que se apresentava, as coisas só pioraram no ano de 1453. Nesta data, os turco-otomanos, chefiados por Maomé II, realizaram a conquista do Império Bizantino. Com isso, as antigas relações comerciais estabelecidas foram desmanteladas e os comerciantes se viram obrigados a conceber uma maneira de alcançar diretamente as especiarias indianas. Nesse novo contexto, Portugal assumiu posição pioneira na chamada expansão marítimo-comercial.

Apesar de até aqui termos a devida noção dos interesses e características desse comércio, pouco se fala sobre as tais especiarias buscadas em terras tão longínquas. Afinal de contas, que produtos indianos eram esses? E qual a utilidade dessas especiarias no cotidiano dos europeus? Para responder essas perguntas, podemos descrever os “poderes” e atrativos de alguns desses produtos que, de certa forma, foram responsáveis por tamanha disputa.

A canela é uma árvore que tem suas cascas processadas por método de ressecamento, que as transforma em um produto apto para consumo. Ralada ou em pau, é útil no tempero pães, compotas de fruta e doces. Além disso, é um útil ingrediente na preparação de cervejas, vinhos e perfumes. Tão famoso quanto, o açafrão é obtido de uma espécie de violeta. De sua parte superior são retirados os estigmas, pequenos caroçinhos que, depois de triturados, temperam e colorem os alimentos.

O anis é uma erva bastante utilizada para fins medicinais. Seus grãos de formato oval e singular aroma são uma boa pedida quando o mau hálito e a indigestão atacam alguém. Em outras situações, também chegava a compor a lista de ingredientes de alguns xaropes, licores e outras receitas culinárias. Originária da Indonésia, a árvore de noz-moscada se aclimatou perfeitamente ao indiano. Com o caroço de seu fruto é possível fabricar um anti-inflamatório natural e temperar pratos salgados e doces.

Comercializado desde o século II a.C., o cravo-da-índia é obtido dos botões de uma pequena flor bastante perfumada. Depois de exposto algumas horas ao sol, o cravo pode ser introduzido na composição de vários alimentos e perfumes. Para quem tem o paladar receptivo a sabores marcantes, as folhas do cominho provocam uma experiência picante e, ao mesmo tempo, levemente amarga. Os indianos costumam levar este condimento ao fogo para intensificar seu tempero.

Bastante popular na culinária brasileira, a pimenta-do-reino tem vários tipos de preparação. Dependendo do fim com o qual é utilizado, esse pequeno fruto pode ser consumido ainda verde, seco ou em conserva. Seu gosto picante abre o apetite, tem propriedades digestivas e aguça a circulação sanguínea. O curry, ao contrário do que muitos imaginam, se trata de um tipo de folha seca usualmente utilizada com fins culinários.

Na verdade, esses são apenas alguns dos produtos que enriqueceram a mesa europeia a partir dos finais da Baixa Idade Média. Muitos outros tipos de produtos manufaturados e especiarias de outros povos integravam essa rentável atividade. Por fim, misturando um pouco de História, Biologia e Culinária, podemos conhecer as propriedades e origens de produtos que até hoje estão presentes no hábito alimentar de diversas culturas.

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Piperina, eugenol, miristicina, elemicina, cinamaldeído, safrol, zingerona… são moléculas que hoje até têm certa aplicação, mas nada tão relevante quanto no passado, quando eram tão desejadas e valorizadas a ponto de motivarem grandes investimentos para obtê-las e conflitos para monopolizá-las. Na verdade, as moléculas em si não eram conhecidas, mas sim o que as continham: as especiarias do oriente, no caso, a pimenta-do-reino, a noz-moscada, a canela, o cravo-da-índia e o gengibre.

Nos dias atuais, essas especiarias parecem pouco mais que uma preferência culinária, a ser adicionada “a gosto”, mas até o século XVII eram consideradas itens de luxo. A tabela a seguir mostra os valores em cidades urbanas da Inglaterra medieval (tais como Londres e Oxford) em 1438-39, bem como, para efeito de comparação, a remuneração diária de um trabalhador médio (nas mesmas cidades urbanas) e outros produtos:

Tabela com a remuneração de um trabalhador médio e preços das especiarias e de outros produtos em cidades urbanas da Inglaterra em 1438-39. (fonte)

Salário Remuneração Unidade
Carpinteiro/pedreiro 6,0 a 8,0 / dia
Especiarias Preço Unidade
Canela 20,0 a 24,1 / libra
Cravo-da-índia 35,6 a 48,0 / libra
Gengibre 12,0 a 28,0 / libra
Noz-moscada 36,0 / libra
Pimenta-do-reino 12,7 a 18,0 / libra
Outros produtos Preço Unidade
Açúcar 16,0 a 24,0 / libra
Amêndoas 3,0 / libra
Cerveja 0,7 / galão
Farinha de centeio 4,0 / libra
Frango 5,0 / unidade
Leite 1,0 / galão
Manteiga 1,0 / pint
Mel 2,5 / pint
Peixe linguado 2,5 / unidade
Sal 0,5 / pint
Vinho tinto 5,0 / galão

OBS.: as unidades de medida no período medieval variavam de acordo com a cidade e o produto, mas para se ter uma noção aproximada, a libra variava entre 330 e 470 g, o galão entre 3,8 e 4,6 litros, e o pint entre 470 e 570 ml.

O fato de as especiarias serem transportadas do Oriente para a Europa Ocidental por grandes distâncias e através de vários comerciantes intermediários era um dos motivos para os altos preços nos mercados europeus. Contudo, quando os europeus acessaram a fonte diretamente por rota marítima (que, apesar de cara, conseguia ser mais barata que a rota anterior repleta de intermediários), os preços das especiarias nos mercados europeus não caíram. Além disso, o comércio de especiarias sempre passou por monopólios, o que também impactava na elevação dos preços. Porém, mesmo um monopólio não consegue impor o preço abusivo que quiser se não houver uma demanda que aceite pagar pelo valor que está sendo cobrado. A realidade é que as especiarias eram tratadas como um item de luxo e moda gastronômica, consumidas apenas em ocasiões especiais por cidadãos comuns e com maior frequência por nobres e abastados – seria um vexame, um sinal de decadência da família, dar um jantar em que os molhos das carnes não estivessem marcados excessivamente pelos sabores característicos das luxuosas especiarias.

E aquela história de que as especiarias ajudariam a conservar os alimentos? Bom, naquelas épocas em que não existiam nem práticas higiênicas de manuseio, nem embalagens estéreis e muito menos geladeira, essa propriedade realmente era relevante, bem como a possibilidade de mascarar o sabor de alimentos com a deterioração já avançada. Entretanto, essas características não foram determinantes para explicar a demanda por elas, afinal, para essas mesmas finalidades, já se utilizavam sal, vinagre, óleos e gorduras, defumação e exposição ao sol. Ou seja, podia-se pagar muito menos se a intenção fosse unicamente a conservação. Um indício de que conservar o alimento seria um fator menos importante do que apreciar o sabor (e principalmente mostrar esse sabor para os outros, ou seja, ostentar) é o fato de haver registros nos manuais de receitas da Europa medieval de que as especiarias eram utilizadas principalmente nos molhos a serem adicionados sobre as carnes durante a refeição. Se a intenção fosse a conservação dos alimentos por dias ou meses, as especiarias seriam adicionadas em abundância durante o cozimento das carnes ou cobrindo-as totalmente (como se faz com o sal), práticas que até poderiam ser realizadas, mas seriam um “desperdício de riquezas” que poucos poderiam arcar.

Mas, de fato, um ponto em comum entre essas moléculas citadas lá no começo é a função que elas exercem de proteger os vegetais nos quais são produzidos, por serem antifúngicas, antibacterianas e algumas serem repelentes e tóxicas para insetos. Quando as especiarias que carregam tais substâncias são aplicadas em alimentos, essas propriedades colaboram para reduzir a atividade de microrganismos e evitar a ação de insetos, o que faz o alimento durar algumas horas ou dias a mais.

Outra função importante que se dava para as especiarias na sociedade europeia medieval era seu uso como medicamento (mesmo quando utilizado em alimentos). Como exemplo de aplicação medicinal, podemos citar o fato de as especiarias serem consideradas quentes (devido à sensação no paladar), o que ajudaria a reestabelecer o equilíbrio de humores (ou fluidos) corporais no caso de uma doença ser associada a um suposto excesso dos humores frios, conforme o conceito vigente na Europa desde a Antiguidade de que a saúde dependia do equilíbrio dos humores. Pelo mesmo motivo, o consumo de especiarias no inverno ajudaria a evitar o desequilíbrio e manter o corpo quente e sadio. E era constante, segundo livros de cozinha francesa, a utilização das especiarias em conjunto com ácidos (vinagre e/ou suco de frutas), que se acreditava terem a propriedade de atingir todas as partes do corpo, inclusive as mais estreitas, e assim o ácido conduziria com mais eficiência as propriedades curativas das especiarias para todo o corpo. Especiarias, em especial a pimenta, eram ainda recomendadas como cura para perda do vigor sexual.

Havia também a teoria de que as especiarias ajudariam na digestão devido ao entendimento da época de que a digestão ocorria tal qual o cozimento em um caldeirão, sendo que a suposta fonte de calor desse cozimento interno seria o próprio calor corporal (conceito relacionado à essência da vida), e, nesse contexto, as especiarias, por serem “quentes”, ajudariam nesse cozimento interno do processo de digestão. Não é raro encontrar ainda hoje em dia a crença de que temperos ajudam na digestão e no metabolismo justamente por serem “quentes”.

Para entender essa sensação de “quentura” (apesar de não estarem em temperatura elevada) e o porquê de as especiarias realmente ajudarem na digestão, vejamos os efeitos da piperina (substância ativa da pimenta-do-reino, compondo de 5 a 10% da especiaria seca) no nosso organismo. A molécula da piperina é capaz de acionar tanto os receptores de dor quanto os de calor (os receptores são acionados por fatores tanto físicos, como temperatura e pressão, quanto químicos, como acidez extrema e certas substâncias como a piperina). Por isso, ela causa a sensação de dor e calor e, como consequência disso, o organismo estimula as produções de saliva na nossa boca e de suco gástrico no nosso estômago. O balanço final é uma digestão facilitada devido à liberação aumentada das enzimas digestivas presentes nessas secreções. Existe ainda uma relação entre moléculas picantes e a produção de endorfinas, que são hormônios opioides que causam alívio, bem-estar e euforia e são produzidos pelo nosso corpo em resposta à dor, à extenuação física e, nesse caso, à “agressão” que a substância picante causa nos terminais nervosos da língua. Outra molécula que também causa esse efeito é a capsaicina, que é o composto ativo de outro grupo de pimentas que inclui a malagueta e a dedo-de-moça.

Vamos agora conhecer melhor as substâncias presentes nas outras especiarias.

Uma das utilizações tradicionais do óleo essencial do cravo-da-índia é a aplicação bucal para alívio de dores de dente. Essa eficácia se deve às propriedades anestésicas do eugenol, que compõe 60 a 90 % do óleo extraído do cravo-da-índia e está presente também, em menor escala, na noz-moscada e canela. Na planta do cravo-da-índia, essa substância tem a importância de atrair certos insetos polinizadores para suas flores.

A noz-moscada possui efeitos psicoativos, podendo causar alucinações e convulsões se ingerido em grandes quantidades. As responsáveis por essa neurotoxicidade são a miristicina e a elemicina, as principais substâncias que caracterizam a noz-moscada (compõem cerca de 1% e 0,3% da noz bruta, respectivamente). Os primeiros sintomas no sistema nervoso podem ocorrer com um consumo de 1 a 2 mg de noz-moscada por kg da pessoa (significa 0,075 a 0,150 g de noz-moscada ingerida por uma pessoa de 75 kg), sendo considerado overdose o consumo de 5 g da noz. No século XIX, acreditava-se que a noz-moscada possuía propriedades abortivas, tanto que se registrou grande número de intoxicação em mulheres, embora, hoje, é conhecido que a noz-moscada e suas substâncias são seguras para gravidez, tendo efeito apenas no sistema nervoso da mãe. No século 14, durante a pandemia da peste negra na Europa, foi comum carregar noz-moscada como amuleto de proteção contra a doença. Hoje é fácil perceber que a correlação entre a peste e a noz faz sentido, uma vez que temos o conhecimento de que o vetor da doença eram pulgas e de que a miristicina e a elemicina são eficientes repelentes de insetos.

O aroma característico da canela é determinado pela substância cinamaldeído, que compõe de 50 a 90% do óleo essencial extraído da casca interna da planta (que é a parte que consumimos da canela). Já o aroma adocicado tanto da canela quanto da noz-moscada possui colaboração da substância safrol. No rizoma do gengibre encontra-se a substância zingerona, que caracteriza o sabor pungente dessa especiaria e é reconhecida atualmente como antioxidante (por captar radicais livre para si) e ativo contra certas bactérias.

Quais os produtos mais comercializados pelos europeus durante as Grandes Navegações?

As moléculas de piperina, eugenol, elemicina, miristicina, cinamaldeído, safrol e zingerona (modelos feito no aplicativo Edumol). Observa-se estruturas químicas similares nelas, o que revela que os mecanismos bioquímicos de produção dessas moléculas são similares nas diferentes plantas. Ainda assim, apesar de tantas semelhanças, a percepção no paladar e olfato são bastante distintos, tendo cada molécula seu odor e sabor muito bem específico.

As propriedades antifúngicas e antibacterianas das especiarias ainda possibilitam que, quando secas, elas durem por muitos meses, o que foi essencial para que suportassem, sem serem deterioradas nem tomadas por mofos e pragas, as longas viagens de mais de 10.000 km do oriente da Ásia até o ocidente da Europa. No próximo texto, veremos como se davam o transporte e o comércio desses itens luxuosos e definidores de status social durante o período que chamamos de Idade Média.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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PINTO, Eugénia; VALE-SILVA, Luís; CAVALEIRO, Carlos; SALGUEIRO, Lígia. Antifungal activity of the clove essential oil from Syzygium aromaticum on Candida, Aspergillus and dermatophyte species. Porto e Coimbra, Portugal, 2009

RODRIGUES, Ronaldo da Silva; DA SILVA, Roberto Ribeiro. A História sob o Olhar da Química: As Especiarias e sua Importância na Alimentação Humana. Brasília, 2009. Publicado na Química Nova Escola, Vol. 32, N° 2, 2010

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Rodrigo Braga. Engenheiro químico de formação, gosta de dar pitacos em química dos alimentos. Curte os bons e velhos RPG e jogos de tabuleiro com a galera. E tem uma paixão inexplicável por produção teatral!

Quais eram os principais produtos comercializados pelos europeus?

Gêneros como a cana-de-açúcar, caju, tomate, cravo-da-Índia, canela, pimenta, café, laranja, banana, entre tantos outros que comumente encontramos no comércio em geral eram raridades disputadas a altos preços. Até mesmo o sal era gênero de alto valor, origem de disputas inclusive no Brasil.

Quais produtos eram comercializados pelos europeus antes das Grandes Navegações?

Porcelanas, cravo, sedas, essências, tapetes e alguns específicos como: (pimenta, canela, gengibre, noz moscada, entre outros) e todos eram produtos de luxo.

Quais são as mercadorias comercializadas durante as Grandes Navegações?

Resposta: São elas, cravo, canela, noz moscada, pimenta, gengibre, açafrão, cardamomo, açúcar, sal; além da seda, ouro e marfim, materiais de luxo utilizados para confecção de vestimentas e jóias.

Quais eram as especiarias mais procuradas pelos europeus?

As mais procuradas, no século XV, eram a pimenta-do-reino, o cravo, a canela e a noz-moscada.