Gozada na boca da mulher

Na noite dos Óscares, o anfitrião e comediante Chris Rock fez uma piada sobre Jada Pinkett Smith, mulher de Will Smith. Chamou-lhe “GI Jane”, gozando com o problema de saúde e de alopecia de que esta actriz padece. Jada não se riu e abanou a cabeça. O seu marido, Will Smith, levantou-se, subiu ao palco e deu uma chapada a Chris Rock. Voltou a sentar-se e disse: “Deixa o nome da minha mulher fora da tua #!* boca.” Chris Rock desvalorizou, dizendo, “Foi uma piada de GI Jane!” Ao que Will Smith repetiu veementemente a mesma frase, “Deixa o nome da minha mulher fora da tua #*! boca.” Chris Rock aceitou, “Sim, vou fazer isso”.

Will Smith ganhou um Óscar e chorou no seu discurso ao aceitá-lo. Disse que a arte imita a vida e ele parecia a personagem maluca que tinha interpretado. Pediu desculpa e afirmou “é o amor que te faz fazer coisas malucas”.

A opinião pública e os media parecem estar mais do lado do Chris Rock. Claro que todos vemos o valor da liberdade de expressão e que ninguém, especialmente no mundo da comédia, deve ser censurado. Mas até é irónico este argumento vir destas celebridades e dos media que apoiaram tanta censura até agora.

Também todos podemos concordar que resolver a zanga com uma chapada não é uma ação louvável e o fim não justifica o meio. A ação de Will Smith não defendeu a honra da sua mulher, só a envergonhou a ela e a si próprio. Descontrolou-se. Quem não tem auto-domínio mas está à mercê das suas emoções, não faz coisas nobres e altas.

No entanto, é um caso complexo e toca em vários assuntos de base. Uma sondagem feita por Blue Rose Research revelou na terça-feira

depois da cerimónia que 52,3% de americanos achou que Chris Rock agiu mal, enquanto 47,7% acho que Will Smith agiu mal. A sondagem não incluiu os indecisos.

Parece haver umas noções muito ténues de amor e matrimónio, por mais ferido e distorcido que estejam. Um marido tentou defender a honra do nome da sua esposa, uma mulher vulnerável e doente perante uma piada claramente desnecessária e de mau tom, ainda que de uma forma péssima e descontrolada.

Estas duas noções, matrimónio e amor, estão muito esquecidas na nossa sociedade, mas especialmente em Hollywood. Will e Jada Pinkett Smith estão casados há 25 anos e são dos raríssimos, mesmo raríssimos, actores com tantos anos de casamento. Há rumores sobre a suposta falta de monogamia no casamento deles, mas na verdade não os conhecemos pessoalmente e não é claro. Chris Rock esteve casado 18 anos e quando se divorciou explicou publicamente que traiu a mulher com três mulheres diferentes. Deu “conselhos de divórcio”, entre piadas, ao seu amigo comediante John Mulaney, que se divorciou no ano passado, gozando que tinha perdido muito dinheiro com o seu divórcio.

Trabalho acima de família?

Em 2021, a taxa estimada de divórcio nos EU foi de 45% e de 58,7% em Portugal, a segunda mais alta na Europa. Há diversas razões que se poderiam apontar, mas uma delas é a clara desvalorização do casamento e da família, muitas vezes em prol do trabalho.

Os actores nos Óscares estavam “entre colegas”. Quase em trabalho. Qual é o mal de uma piadinha sobre a mulher de um deles? Sobre um dos casamentos mais duradouros (e também mais vulnerável, que

atravessa esse momento de doença) daquela sala. Vinda de um homem divorciado e com muita experiência de infidelidade. Qual o problema de uma piada, colega?

Recentemente, fui literalmente expulsa dum grupo Whatsapp de colegas de faculdade do meu marido. Foi sob o pretexto de ser um grupo só para os colegas de ano daquele curso, embora claramente possa ter havido outros factores. Achei interessante o comentário da minha amiga americana, com a sua perspetiva cultural de fora, “Que chatice não verem marido e mulher como uma unidade. É por isso que a infidelidade está tão alastrada em Portugal.”

Felicidade acima de fidelidade?

Realmente, é verdade que marido e mulher formam uma só carne e são uma unidade. Essa relação é a base da criação duma nova família, e a base da sociedade mais preciosa e com mais necessidade de defesa. O matrimónio não está ao mesmo nível nem é comparável ao trabalho. Os empregos sim, podem trocar-se, pode haver “traições” e colegas em que “não se confia”. Estamos lá para servir, para contribuir para a sociedade, para pôr os talentos ao serviço e não estamos casados com o trabalho. O trabalho não reflecte a nossa identidade mais profunda. É mais superficial.

Muitos fazem depender a sua auto-valorização e identidade do trabalho. E quantas infidelidades no casamento não começam no trabalho? Com colegas, com chefes? É preciso guardar muito bem a vida íntima do casal, não deixar ninguém meter uma colher, nem o trabalho nem o Chris Rock.

“Fiel é nome de cão”, disseram-me entre risos quando cheguei a Portugal. Realmente o matrimónio e a fidelidade parecem valer um

pouquinho menos em Portugal do que noutros sítios. Vê-se o quanto é importante para os americanos saberem da vida privada dos políticos. Quantos casamentos já teve, se traiu ou não, é importante saber quem vai servir o país, num cargo público. Até é rotina perguntar diretamente numa entrevista a um candidato se for uma função alta do governo. Em Portugal, não se sabe nem se quer saber da vida privada e amorosa dos políticos. Nem de ninguém. Nada interessa, não existe código ético, desde que se seja “feliz”.

Will Smith deu uma chapada à antiga, à homem embriagado num bar britânico, para defender a honra da sua mulher. Chris Rock não esteve bem, Will Smith também não esteve bem. Poderia ter defendido a sua mulher duma maneira que se sacrificasse a si. Podia ter saído da sala e não ter ficado para receber o seu Óscar, por exemplo.

No meio de todos estes erros, persiste um raio de luz que 52,3% não consegue descartar. Will Smith tentou defender a sua mulher, por mais descontrolada e vergonhosa que tenha sido a forma. Valorizou o seu casamento, por mais ferido e comprometido que possa estar, perante os colegas e perante um mundo hostil. Todos os casamentos, mesmo os que parecem falhados, são dignos de serem defendidos. Denzel Washington, esse sim com um casamento exemplar de 38 anos, procurou acalmar Will Smith depois do incidente, e Will Smith mencionou-o no seu discurso ao aceitar o Óscar. Denzel terá dito, “No teu momento mais alto tem cuidado, é aí quando o diabo te procura.”

Todos somos frágeis e feitos de barro, por vezes cometemos erros e por vezes descontrolamo-nos. Will Smith estava no seu momento mais alto, prestes a receber um Óscar, foi tentado e falhou. Mas o seu esforço por defender a sua mulher doente e o seu casamento, por mais distorcido que tenha sido, deixou um marco e uma inquietação em muitos corações.