Como era a vida dos trabalhadores nas vilas operárias?

Como era a vida dos trabalhadores nas vilas operárias?

Como surgiram as vilas operárias *?

Quando surgiram Passaram a ter sua construção estimulada pelo Estado brasileiro na virada do século 19 para o 20, como resposta ao crescimento da população trabalhadora nas fábricas e às preocupações com a salubridade e a higiene das cidades.

Por que surgiram os cortiços e as vilas operárias?

Em São Paulo, os lugares prioritários para estabelecimento das vilas operárias eram as regiões vizinhas às áreas já ocupadas pelos trabalhadores, em terrenos pouco valorizados e perto das fábricas e ferrovias, para atingir um denominador comum entre lucro, controle do operário e facilidade de locomoção ao trabalho.

Como eram as moradias nas vilas operárias?

As casas operárias foram construídas uma ao lado da outra; eram casas iguais, geminadas, ocupando o quarteirão inteiro e aproveitando os terrenos da fábrica. Prédios de mais de dois andares não existiam na vila.

Como eram formadas as vilas operárias?

A vila operária consiste em um conjunto de moradias criado por empresas e indústrias para alojar seus trabalhadores. ... Nesse período, as vilas operárias modificaram de maneira intensa a paisagem de grandes cidades brasileiras em que muitas fábricas se instalaram, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador.

Qual a origem dos cortiços?

Os cortiços surgiram em São Paulo no século 19, em dois momentos: após a abolição da escravatura, quando os negros foram morar em casarões no centro, e a partir de 1890, início do processo de urbanização e industrialização da cidade. Entre 18, a população de São Paulo aumentou quase 22 vezes.

Como era a vida nas vilas operárias?

as vilas operárias eram precárias, sendo muitas vezes construídas de maneira improvisada, com materiais inadequados, sem sistemas de esgoto, água encanada ou obedecer normas de seguranças.

Quando surgiram os cortiços?

Os cortiços surgiram em São Paulo no século 19, em dois momentos: após a abolição da escravatura, quando os negros foram morar em casarões no centro, e a partir de 1890, início do processo de urbanização e industrialização da cidade.

Porque os cortiços existem ainda hoje nas grandes cidades brasileiras?

Dentre os inúmeros fatores explicativos estão os baixos salários dos trabalhadores, o alto custo da terra urbanizada e a insuficiência de políticas públicas destinadas às favelas, aos loteamentos precários e, particularmente, aos cortiços.

Como era a vida nas vilas operarias?

as vilas operárias eram precárias, sendo muitas vezes construídas de maneira improvisada, com materiais inadequados, sem sistemas de esgoto, água encanada ou obedecer normas de seguranças.

Como era a vida dos operários como eram as suas casas?

Na verdade, as condições de vida dos trabalhadores eram precárias: eles viviam em bairros afastados das regiões centrais das cidades, suas casas eram insalubres, construídas em ruas escuras e sem pavimentação, eram mal ventiladas, não tinham água e apresentavam péssimas condições sanitárias.

Résumés

Este artigo procura reter algumas impressões acerca das múltiplas construções sociais e de gênero erigidas em torno dos espaços de sociabilidades nas vilas operárias do sul de Santa Catarina entre os anos de 1930 a 1960. Para realização de tal análise tomarei como objeto de estudo um bairro em específico, a vila operária Próspera, pois a mesma, durante muito tempo foi a maior e a mais populosa vila operária da região abrigando um número considerável de trabalhadores/as ligados as atividades carvoeiras. A construção deste local de habitação assim como em outros lugares obedeceu a uma regra comum às vilas da região, alguns lugares públicos como as igrejas, os bares, as vendas, os clubes, os lavadouro, etc., foram utilizados e apropriados segundo uma divisão sexual dos espaços, impedido a livre circulação de homens e mulheres em determinados espaços físicos da vila reforçando a existência de identidades de gênero para um e outro sexo.

This article aims to explain the multiple social construction and gender separation in the areas and public spaces in the working class villages of southern Santa Catarina between the years 1930 to 1960. To perform such an analysis I will take as object of this study a specific neighborhood, the working village Prosperous, for it has long been the largest and most populous vila operaria in this region and sheltered a large number of workers (both men and women) especially coal miner workers. In this village and as well in others as a common rule, free circulation of men and women have been prevented in many public places such as Churches, bars, grocery stores, clubs etc., which reinforced the existence of gender identities for either sex. 

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Texte intégral

  • 1  Este artigo é parte modificada de minha dissertação de mestrado, intitulada Faces da Assistência S (...)
  • 2  Pedro, Joana Maria. “Relações de Gênero na Pesquisa Histórica”. Revista Catarinense de História. n (...)

1Este artigo tem a intenção de compreender como se construíram os múltiplos espaços de sociabilidades femininas e masculinas nas vilas operárias do sul de Santa Catarina entre os anos de 1930 a 19601. Através das perspectivas analíticas oferecidas pelos estudos de gênero, é possível evidenciar as dinâmicas relacionais, sejam elas sexuais ou sociais, que se construíram dialogicamente entre homens e mulheres no espaço do cotidiano, pois “a organização social da relação entre os gêneros é instável, e dependente de múltiplas determinações e relações de poder”.2

  • 3  Brito, Maria Noemi Castilhos. “Gênero e cidadania: referencias analíticos”. In: Revista de Estudos (...)

2Dividido em duas partes este artigo procura apontar alguns aspectos processuais que construíram lugares de sociabilidades marcadamente sexistas e binários, onde a livre circulação de um ou outro sexo dependiam de normas de condutas polarizadas em rígidos códigos morais “a mulher pertencente ao domínio familiar e privado, e [o] homem [...] ao domínio da atividade pública”.3 Num primeiro momento, trataremos dos espaços constituídos pela presença quase que constante do feminino: o lavadouro, a venda e o açougue; ambos relacionados àquelas atividades que se convencionaram a ser entendidas como essencialmente femininas, ou seja, relacionadas ao mundo do doméstico. Durante toda a primeira metade do século XX foram inúmeras as amarras que atrelaram o feminino ao espaço do privado, primando pelo zelo da casa e da família. Neste período marcado por fortes preconceitos de gênero, as mulheres deveriam ser criadas desde pequenas para cumprir sua missão como reformadora social: casar e gerar filhos para a pátria, ou seja, ao dividir o mundo entre o público e o privado, a sociedade burguesa industrial destinou a mulher o mundo privativo da família e suas atribuições correlatas, criando uma série de inibições, através de um olhar atento e vigilante, que cerceavam sua livre circulação entre espaços públicos.  

  • 4  Okin, Susan Moller. “Gênero, o público e o privado”. Revista de Estudos Feministas. Ano 16. Vol. 0 (...)

3O segundo item adentra sobre o mundo das sociabilidades masculinas marcadas pela diversão e pelos jogos. Ao contrário das mulheres que tiveram construídas moralmente em torno do espaço doméstico e suas atividades correlatas, aos homens destinou o fabuloso mundo da aventura: o espaço público. Se as mulheres, pressionadas por fortes amarras morais, esperava-se recato e modéstia, dos homens, pelo contrário, esperava-se sua constante presença no espaço público representando sua mulher e seus filhos. Esta dicotomia relacional no espaço público, exemplifica como os papéis sexuais serviram para naturalizar e enrijecer as identidades de gênero; parafraseando Susan Okin, grande parte da experiência real das pessoas, enquanto elas viveram em sociedades estruturadas por relações de gênero, [depende] de qual é o seu sexo.4

  • 5  Thompson, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 104-117.
  • 6  Prins, Gwyn. “História Oral”. In: BURKE, Peter (Org.). Escrita da história:novas perspectivas. São (...)

4Na realização deste processo analítico tomaremos como estudo de caso a vila operária Próspera, um local de habitação operária, construído para abrigar os trabalhadores do carvão que se deslocaram para a cidade de Criciúma, a partir 1930, em busca de emprego nas indústrias mineradoras. Ao escolher trabalhar com sujeitos intrinsecamente ligados as atividades industriais, o pesquisador tem a sua frente uma onerosa empreitada na busca evidências documentais a respeito da vida ordinária dos operários; pois as empresas conservaram nos seus acervos institucionais, sobretudo, documentos de natureza contábil. Desta forma, segundo Paul Thompson, a evidência oral é de particular valor para os historiadores da vida operária, pois através dela obtemos novas interpretações historiográficas que não as oficiais, contidos nos registros das corporações, dos sindicatos, das associações que apenas apontam vitórias e derrotas, que apesar de sua importância, restringem em muito a margem de manobra do historiador.5 Utilizada como uma importante fonte documental deste estudo, a história oral, permite “adentrar” na memória daqueles/as que não se expressaram através do registro escrito. Segundo o historiador Gwyn Prins, as reminiscências pessoais podem proporcionar uma atualidade e uma riqueza de detalhes não encontrados em outras fontes documentais. Segundo o autor, a história oral é a melhor maneira de reconstruir as particularidades triviais da vida das pessoas comuns.6

  • 7  Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre. A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar. 2ª edição (...)

5O bairro, para o historiador Pierre Mayol, é o local do ordinário e do corriqueiro, expressado pela criatividade dos sujeitos que ali habitam; mas também, é o lugar onde se manifesta todo um “engajamento social”, uma arte de conviver com os vizinhos que estão ligados uns aos outros essencialmente pela proximidade e pela repetição. Viver no bairro impõe um compromisso coletivo onde cada uma das pessoas que ali residem renunciam suas pulsões individuais, em favor da comunidade. Ao viver em concordância com os valores estabelecidos pelo grupo social, como saber portar-se, falar, ser conveniente, ou seja, ao respeitar as normas da vida cotidiana, o morador pode retirar daí benefícios e usufruir contrato implícito que fundamenta a coexistência do bairro, como ser reconhecido e considerado por seus pares.7

  • 8  Ibid. p. 57.

6Ainda segundo Pierre Mayol, mesmo sendo um local de livre circulação, onde as pessoas, independente de sexo estavam em constante contato “alguns lugares do bairro são mais especificamente marcados por este ou aquele sexo”.8 Locais em que a aproximação do outro era terminantemente proibida e passível de sanção segundo códigos estabelecidos pelos próprios moradores do bairro. Estas penalidades poderiam ir desde brincadeiras leves e maldosas, como as famosas “chacotas”, à medidas mais duras e enfáticas como a repreensão oral ou agressão física. Desta forma, na vila operária Próspera, assim como em outros bairros da região, alguns lugares públicos como as igrejas, os bares, as vendas, os clubes, os lavadouro, etc., foram utilizados e apropriados segundo uma divisão baseada nas distinções entre os sexos.

  • 9  Scott, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. Porto (...)
  • 10  Varikas, Eleni. “Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo entre Tilly-Scott”. (...)
  • 11  Matos, Marlise. “Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feminista (...)

7Balizado no uso da categoria de gênero como perspectiva analítica, pretendemos compreender como múltiplos discursos perpassaram os corpos de homens e mulheres, atuando na forja suas identidades, “construindo relações sociais fundadas sobre as diferenças entre os sexos”.9 Estas distinções sociais edificadas sobre a dicotomia masculino/feminino, fundaram comportamentos arquétipos no qual cabia a mulher desempenhar funções ligadas ao mundo do doméstico e do privado, delegando aos homens as benesses da vida pública. Cabe neste caso, ao historiador de gênero questionar estes conceitos dominantes e mostrar suas fragilidades, expondo desta forma que as “estratégias de dominação que sustentam a construção binária da diferença dos sexos [...]”,10 são social e historicamente construídas a partir de um binarismo estéril que “facultam lugares fixos e naturalizados para os gêneros”.11     

  • 12  Nicholson, Linda. “Interpretando gênero”. Revista de Estudos Feministas, vol 8, n. 2. Florianópoli (...)
  • 13  Idem.

8Ao analisar a construção destes espaços baseados nas distinções entre os sexos, busco apresentar que o “biológico foi assumido como base sobre o qual os significados culturais são constituídos”.12 Estas identidades assumidas por homens e mulheres engessadas sobre sua anatomia biológica, erigiu corpos sexuados onde as características físicas passaram a ser vistas não apenas como germe da distinção entre masculino/feminino, “mas como algo que tornava esta distinção altamente binária”.13 Dentro desta perspectiva, pode-se dizer que as sociedades modernas fundamentaram um conjunto de conhecimentos sobre os corpos dos indivíduos fixando identidades de gênero estáticas para ambos os sexos, permitindo inclusive agrupá-los “de acordo como uma unidade artificial, de elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres.” ancorando de forma específica e irredutível códigos de comportamentos que deveriam ser engendrados por ambos os sexos.

Espaços e sociabilidades femininas: a venda, o açougue e o lavadouro

  • 14  Maluf, Marina; Mott, Maria Lúcia. “Recônditos do mundo femenino”. In: Sevcenko, Nicolau (Org). His (...)
  • 15  Perrot, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz (...)

9Na vila operária Próspera identificavam-se três espaços públicos como sendo predominantemente femininos: o lavadouro, a venda e o açougue; estes lugares, tornaram-se ambientes mais propensos a reuniões de mulheres por estarem relacionados ao cotidiano da vida doméstica. Segundo as historiadoras Marina Maluf e Maria Lúcia Mott, durante os anos dourados as mulheres eram responsáveis pela organização da casa, pelo bem-estar do marido e dos filhos, zelando pela existência de uma família saudável e respeitosa, ficando sob sua inteira responsabilidade o bom desenvolvimento das atividades domésticas14.  Esta administração da casa – que Michele Perrot chamou de matriarcado orçamentário15 – apesar de fatigante colocava a mulher em uma posição privilegiada no que diz respeito a organização do espaço doméstico; ela sabia quais contas deveriam ser pagas, as prioridades do mês, quem precisava de roupas novas, o que estava faltando na despensa, quanto sobraria o faltaria do orçamento familiar, enfim, tudo passava por seu olhar atento e criterioso.

  • 16  Ibid. p. 191.

10Por ter entre seus encargos uma infinidade de tarefas cotidianas, às mulheres competia a responsabilidade das compras semanais ou o conhecido “rancho” mensal da família. Michele Perrot ao analisar as famílias operárias da França da primeira metade do século XX, constata que o marido entregava todo o seu salário do mês à mulher para que esta se encarregasse de realizar as compras mensais, ficando ele apenas com uma pequena parte para a bebida. A época do pagamento era um dia de grande agitação, brigas e alegrias. Era o momento em que as donas-de-casa punham-se na estrada em direção aos mercados com a expectativa de retornar para casa com a maior quantia possível de comida. Além disso, era “também um dia de confronto entre os sexos, onde a dona de casa se rebelava contra a sua tarefa impossível: sem o “tutu”, dar de comer a família”.16 O mercado tornava-se o espaço das mulheres.

  • 17  Este armazém foi construído em parceria com o SESI fazia parte dos postos de abastecimento de gêne (...)

11A constante presença do feminino em estabelecimentos comerciais que revendiam gêneros alimentícios, acabaram por tornar a maioria das vendas existente no interior das vilas operárias de Criciúma em um espaços de sociabilidades femininas. A venda17 e o açougue da vila operária Próspera faziam parte de uma ampla rede de “facilidades” ofertada pela própria companhia mineradora para que os moradores não precisassem sair das imediações do bairro nem mesmo para satisfazer suas necessidades essenciais. Com isso a empresa, além controlar a circulação dos operários e os membros de sua família pela cidade, conseguia também impor aos trabalhadores o que estes poderiam consumir. Devido à grande distância que separava o município de Criciúma dos centros de distribuição de mercadorias, boa parte dos produtos comercializados pela venda da vila operária Próspera era reposto nos dias em que seriam realizados o pagamento dos salários. Eram nestes períodos que o armazém recebia o maior número de compradoras.

  • 18  M. A. A.: Depoimento [08 de outubro de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acer (...)

12A rotina das mulheres da vila, na época de compras mensais era sempre a mesma, devido a pouca quantidade e variedade de produtos, estas saíam de casa ainda pela manhã e, em pares ou em grupos se dirigiam para o estabelecimento comercial na tentativa trazer para casa mercadorias de preços modestos e de boa qualidade. As compras eram realizadas em um curto espaço de tempo, pois as mulheres ainda tinham que dividir sua atenção com outras atividades, tais como, lavar as roupas, cuidar das crianças e preparar o almoço, já que muitos mineiros retornavam para casa na hora da refeição. As primeiras conversas eram estabelecidas ainda no caminho para a venda.  Pelas ruas estas iam se interando dos acontecimentos ocorridos nos últimos dias: o casamento da fulana que não estava dando mais certo, a filha da sicrana que estava namorando escondida ou o beltrano que possuía uma amante na Maracangalha. A chegada na venda era o ápice desta empreitada. Neste local, as mulheres podiam encontrar e conversar com as vizinhas mais distantes, pessoas que não eram vistas há semanas ali poderiam ser localizadas. As mais experientes davam conselhos sobre quais produtos possuíam melhor qualidade, forneciam receitas, ensinavam unir o apertado orçamento doméstico com as possibilidades do momento.18 Além do bate papo sobre o cotidiano doméstico, longe dos olhares masculino, as mulheres podiam conversar sobre assuntos da vida privada de cada uma delas, incluindo aqueles relacionados à sexualidade feminina e tão proibitivos em outros ambientes. Falava-se sobre gravidez, experiências sexuais, métodos contraceptivos, doenças relacionadas ao corpo feminino, enfim, uma série de diálogos que cotidianamente não podiam ser exteriorizados.

  • 19  Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre, 1996, op. cit., p. 50-60.

Na rua, no bar, na loja comercial [...] quando se trata de alusão sexual, o registro da linguagem muda imediatamente: não se fala a não ser em torno do sexo, de maneira distante, mediante manipulação muito fina, sutil, da linguagem, cuja função não é elucidar, mas “dar a entender” [...]. Essa prática cotidiana, freqüentemente, do desvio semântico, talvez encontre a sua forma mais acabada na técnica lingüística do trocadilho, do jogo de palavras, de todo ato de palavra que, escapando ao sentido convencionado, deixa surgir um duplo sentido.19

13Devido ao fato de o trabalhador mineiro esbanjar boa parte de seu salário em bebidas e noitadas em bares, a companhia mineradora resolveu entregar para as mulheres uma ordem de compra que possibilitava a estas adquirir no açougue uma quantia mensal de carne que era descontada diretamente do salário do trabalhador no final do mês.

  • 20  Perrot, 1988, op. cit., p. 192.

14A administração do salário é, sem dúvida, uma difícil conquista das mulheres, resultado de uma luta cheia de ciladas, onde o patronato, cioso em favorecer um “bom” uso do salário por vezes estendeu às mulheres uma mão generosamente compassiva.20  

  • 21  Assim chamados os homens que ficavam espionavam as mulheres, pelas frestas ou “gretas” das casas.

15Assim como ocorria na venda, a falta de mercadorias e as constantes oscilações dos preços da carne faziam com que boa parte das mulheres saísse de casa ainda durante a noite para organizar uma fila na porta do açougue. Como não podiam se ausentar de casa durante período noturno, seja porque tinham que cuidar da família ou porque vila ficava sob a completa escuridão trazendo a vida as mais diferentes criaturas soturnas (bêbados, gatunos, tarados e gretas21) as mulheres organizavam a fila na frente do açougue na noite anterior demarcando seus lugares através do posicionamento de pratos e tampas de panelas. O relato de J.S., que quando criança acompanhava sua mãe na formação da fila, é esclarecedor neste sentido:

  • 22  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pes (...)

Elas iam ao açougue comprar carne, todos nós comprávamos no mesmo açougue, era uma briga tinha que fazer fila de noite, faziam filas de prato para marcar os lugares, por que a gente comprava carne com uma ordem dada pela empresa e o próprio açougue era da empresa, para descontar em folha de pagamento todo mês.22

16Logo pela manhã quando os primeiros raios de sol iluminavam as ruelas da vila, ainda congestionadas pelo sono e vestidas de chambre, as mulheres colocavam-se em marcha rumo ao estabelecimento comercial onde tomariam os lugares de suas tampas e pratos. Neste momento iniciavam-se as discórdias, descobria-se roubo de lugares, os pratos mexidos. Começavam então as desavenças. Era a hora de acertar as contas com a vizinha mentirosa, com os desafetos, com as boateiras. Depois dos xigamentos, pequenos empurrões, satisfações tomadas e alguns tapas, a fila era reorganizada. Só então as compras podiam ser efetuadas.  

17O lavadouro era outro espaço freqüentado pelas mulheres da vila. Devido a constante falta de água na rede regular de abastecimento, a companhia mineradora instalou em pontos estratégicos do bairro um pequeno número de torneiras que eram utilizadas para o aprovisionamento das moringas que armazenavam a água de uso cotidiano e para a lavagem de roupa. Devido à considerável distância entre as torneiras e as residências, as mulheres transferiram seus tanques de lavar roupa para perto das bicas, pois enchê-los de água em casa, utilizando pequenos baldes, levaria horas. Eis o que afirma J.S.:

  • 23  Idem.

[...] era assim, as mulheres lavavam em tanques em casa, carregavam água de balde da torneira lá da esquina para casa, para encher o tanque, aqueles tanques de madeira, e para facilitar as coisas e não ficar carregando água, elas pegavam os tanques e colocavam perto das torneiras, formando um aglomerado de tanques.23

  • 24  Assim chamado o tanque d’água.  
  • 25  Como era conhecido o local onde foram instaladas as torneiras.

18Com a transferência dos cochos24 para perto da carioca,25 desenvolveu-se neste local uma intensa vida social. As mulheres da vila, logo pela manhã, depois de terminarem as primeiras tarefas domésticas – arrumar as crianças, passar a vassoura na casa e encaminhar o almoço – pegavam suas trouxas de roupas, sussurrando algumas cantigas ou aborrecidas com tanto trabalho, caminhavam em direção à fonte onde iniciavam a lavação de roupas. Dona O. D. relembra esta tarefa:

  • 26  O. D.: Depoimento [01 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pe (...)

Depois de arrumar a casa, a gente pegava a trouxa de roupa e umas bacias, o sabão era feito em casa mesmo, a gente pegava tudo e ia lavar roupa, a mulherada toda ia, era meio longe mais tinha que ir. A gente tentava deixar a roupa o mais limpo que dava porque tinha muita pirita. Tudo era muita pirita. Daí a gente lavava e conversava.26

Como era a vida dos trabalhadores nas vilas operárias?

Figura 01: Local onde as mulheres se reuniam para lavar as roupas– Criciúma/SC (década de 1950).

Fonte:Álbum/Relatório das atividades das pequenas Irmãs da Divina Providência. (1955-1957) – SESI – Criciúma/SC.

19Segundo J.S., no lavadouro as mulheres trocavam informações sobre tudo o que ocorria na vila. Eis sua afirmação:

  • 27  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pes (...)

Ali elas conversavam, fofocavam, cantavam, ali corriam todas as notícias do bairro, quem fugiu, [...] quem foi para rua da empresa, tudo isso era conversado ali, quem estava namorando, era um ponto de encontro das mulheres, por isso que dava fofoca e confusão, ali se desfiava a vida dos outros, como dizia a minha mãe.27

20Os lavadouros instalados nas vilas operárias eram também locais onde se trocavam informações sobre os afazeres cotidianos, o nome de uma boa costureira, um xarope eficiente, chás para abortar, sobre tudo alguém tinha uma opinião ou um bom conselho para dar. Se uma mulher precisasse de ajuda ali certamente encontraria. Para Michele Perrot,

  • 28  Perrot, 1988, op. cit., p. 203.

[...] o lavadouro é para elas muito mais que um lugar funcional onde se lava roupa: um centro de encontro onde se trocam [...] os bons endereços, receitas e remédios, informações de todos os tipos. Cadinhos do empirismo popular, os lavadouros são também uma sociedade aberta de assistência mútua: se uma mulher está num “atoleiro”, acolhem-na, fazem uma coleta para ela.28

21Se por um lado o lavadouro era um lugar onde as redes sociais eram tecidas, por outro, nele aquelas mulheres que por algum motivo burlavam as normas de conduta do bairro eram excluídas. Assim que detectado o desvio, rapidamente esta era impedida de freqüentar o local, tornando-se alvo de agressões verbais e até mesmo físicas. A narrativa de Dona M. A. A. é esclarecedora neste sentido.

  • 29  M. A. A.: Depoimento [08 de outubro de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acer (...)

22Eu morava em um bairro onde eu e outra vizinha não podíamos ir na fonte por que as outras não deixavam, se a gente fosse elas prometeram que iriam bater em nós. A gente era evangélica e elas eram católicas, chamavam a gente de evangelistas e diziam que não gostavam de evangelistas, acho que se elas nos pegassem bateriam mesmo, nem o varal a gente podia usar. Então eu e a minha amiga fizemos o seguinte, na hora do almoço, quando elas estavam em casa com os maridos comendo a gente ia bem rapidinho lavava tudo, mas não ficava nem limpo e nem branco, ai a gente voltava correndo para casa e estendia.29  

  • 30  Perrot, 1988, op. cit., p. 204.

23A limpeza das roupas era uma grande preocupação das mulheres. Quanto mais limpa e mais branca fossem as roupas, melhor lavadeira seria a dona-de-casa, podendo ela inclusive conseguir alguns clientes. Lavar roupa “para fora” era uma das únicas alternativas de renda para as mulheres da vila operária Próspera. Este trabalho não era visto com “maus olhos”, pois o mesmo não as afastava de suas lidas domésticas e dos cuidados com a família. Em um momento em que o sanitarismo dominava a cena médica do país e o cuidado com o corpo tornava-se um imperativo, o asseio das roupas que eram vestidas por um determinado indivíduo revelava muito sobre o ambiente doméstico em que este vivia. Conforme afirma Michele Perrot “a limpeza é apresentada como irmã da moral”.30

Mina, boteco e Maracangalha: noitadas alegres em antros sórdidos.

  • 31  Segalen, Martine. Sociologia da Família. Lisboa: Terramar, 1999.p. 285.
  • 32  Prost, Antoine. Fronteiras e espacos do privado. In: (Orgs) Prost, Antoine; Vicent, Gérard. Histór (...)

24O trabalho no interior das minas de carvão requeria grande esforço físico e atenção a fim de que se evitassem possíveis acidentes durante o processo de trabalho no interior das galerias. Para que não houvesse surpresas desagradáveis ao longo da jornada laboral, era preciso que o mineiro ao chegar em casa tivesse uma noite sossegada de sono, pois, na manhã seguinte, este deveria estar pronto para mais uma jornada exaustiva de trabalho. Este era, o procedimento esperado do mineiro que trabalhava em uma das carboníferas mais importantes da cidade. Mas ao deixar as entranhas da terra, o operário dirigia-se a sua casa e, ali encontrava a esposa e seus filhos, dividindo o espaço minúsculo. Segundo a socióloga Martine Segalen, a habitação exígua é o espaço da mulher e dos filhos, o marido sente-se excluído, e como local para se divertir após as estafantes jornadas de trabalho, só tem o bar, em companhia de outros homens.31 Para Antoine Prost, na maioria das vezes quando o homem regressava do trabalho, este estava retornando para a casa da mulher. O homem não podia tomar iniciativas nesse espaço sem sujar, quebrar ou desarrumar; disso resultavam as sociabilidades masculinas fora da esfera do doméstico.32  

  • 33  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pes (...)

25Na maioria das famílias de mineiros a rotina era a mesma. Ao sair do trabalho o homem passava primeiro no bar para tomar um gole de cachaça como “aperitivo”. Após, dirigia-se para casa onde tomava um banho preparado pela esposa em uma bacia colocada no centro da cozinha. Esta, em seguida, lhe servia o jantar com as poucas provisões que o salário permitia comprar. Após cumprir este “ritual” diário o mineiro retornava para o botequim.33 O boteco passou a configurar no ideário burguês como um local de subversão, onde bandos de “desordeiros” encontravam-se para conversas “regadas” a muita cachaça e a jogos de carteado. A estigmatização desta opção de lazer dos pobres urbanos, tinha como principal objetivo afastar os trabalhadores destes “antros de perdição”, pois segundo a norma burguesa, pouco a pouco, de gole em gole, o homem atravessaria linha tênue que separava o operário pobre do “desocupado vagabundo”. Segundo Marlene de Fáveri,

  • 34  Fáveri, Marlene de. “Guerra e papéis masculinos: reflexões na perspectiva de gênero”. In: Anais do (...)

O conceito de homem, na época é aquele que não deixa a família à mercê, mas a protege, alimenta, e trabalha – o trabalho como valor e sinônimo de dignidade. Segundo os pressupostos burgueses, o trabalho é uma virtude, liberta o homem do mundo da natureza e lhe garante a condição de ser livre [...] Nos anos de 1930 e 1940, o trabalho retinha a idéia de virtude imbuída do liberalismo: ser cidadão era produzir riquezas, ter carteira de trabalho e estar moralmente dentro da concepção dos direitos e deveres para com o Estado [...] Isto era ser homem naquele momento, pautado no ideário que permeava o universo masculino: prover a família, melhorar de vida, ser honrado, e assentado nos valores de família e pátria.34

  • 35  Donzelot, Jacques. A polícia das famílias. 3ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 55-63.
  • 36  Davi, Edmar Henrique Dairell. “Macho a qualquer custo. Investigação das relações de gênero através (...)

26O bar representava um verdadeiro obstáculo para a introjeção dos valores morais do trabalho e da poupança. Gastando os parcos trocados do orçamento familiar, recairia então sobre o Estado a assistência a família. Segundo Jacques Donzelot, incitando indivíduos à poupança, o Estado diminuiria o seu ônus sobre a gestão da população, transferindo para esfera do privado encargos demasiadamente pesados para a administração pública, e para que isso ocorresse, era preciso que a própria família assumisse certas funções, tais como, cuidar, alimentar e zelar pela saúde de todos os seus membros.35 Esperava-se que o homem assumisse o seu lugar de chefe e provedor da casa. Segundo o historiador Edmar H. D. Davi, “nossa sociedade, pelos menos até o final do século XX é permeada por valores machistas e heterossexistas. Aos homens cabe o controle da sociedade, enquanto as mulheres é reservado o espaço doméstico”.36 Ao se entregar ao consumo de álcool, o homem paulatinamente acabaria por perder o controle sobre sua prole deixando de ser a baliza moral da família, como alerta o articulista do jornal Tribuna Criciumense.

  • 37  Fernandes, Juarez. “Alcoolismo (ou etilismo, para os alcoólatras granfinos)”. Tribuna Criciumense. (...)

[...] a ação do álcool não se limita apenas a ruína do organismo humano [...] Êle vai mais longe, desgraçadamente por que afeta profunda e irremediavelmente a personalidade, a moral do homem. Um indivíduo que se embriaga por vício prolongado, é um deprimido, não tem mais fôrça de vontade, foge ao comprimento do seu dever e de chefe de família, não inspira confiança a ninguém, é em suma desmoralizado, de quem todos procuram fugir e se afastar.37

  • 38  Chalhoub, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da bel (...)
  • 39  Certeau; Giard; Mayol; 1996, op. cit. p. 58.

27Para o historiador Sidney Chalhoub, tanto os homens do poder quanto os cientistas sociais, tendem a analisar as práticas das camadas populares urbanas através de um prisma, no qual escolhem como condutas ideais aquelas praticadas pelas camadas dominantes e que pretensamente são tomadas como “universais”. A partir deste ponto, constata-se que a conduta real vivida pelas camadas populares não se ajusta aos padrões organizados pelas elites, e, por isso, suas sociabilidades cotidianas são observadas através de uma lupa onde a desordem e pela promiscuidade aparecem como características preponderantes das camadas pobres urbanas.38 Já para o historiador Pierre Mayol, o bar é um lugar ambíguo, pois, ao mesmo, tempo que para os seus freqüentadores ele se torna uma recompensa por um dia estafante de trabalho; por outro lado, ele é terrivelmente temido pela propensão ao alcoolismo que ele parece autorizar.39

  • 40  C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo (...)

28O uso imoderado de bebidas alcoólicas, dos trabalhadores mineiros da vila operária Próspera provocava desentendimento entre cônjuges, como relembra Irmã C. F.: “Irmã não tem jeito o meu marido bebe muito e quando chega em casa não tem paciência com as crianças”.40 Além de desestabilizar a relação vigente entre o casal, o uso imoderado de álcool também era percebido pela empresa mineradora como uma das causas para baixa produtividade de seus operários.

  • 41  Boa Nova Junior, Francisco de Paula. “Problemas médicos –sociais da indústria carbonífera sul cata (...)

[...] outra causa de fadiga entre o operariado da indústria carbonífera é, sem dúvida, o uso imoderado de álcool, que além do mais é causa determinante de acidentes diversos, exercendo ainda nefasta influência sobre a eficiência do operário.41

  • 42  Médico contratado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral para realizar um levantamento soc (...)

29Local onde se desenrolavam as sociabilidades tidas como propriamente masculinas, e a principal opção de lazer entre as camadas pobres urbanas, os bares existentes nos arredores da vila operária foram incessantemente criticados pelo médico Francisco de Paula Boa Nova Junior,42 que via nestes lugares um “palco” privilegiado para o consumo excessivo de álcool. Segundo o sanitarista, o consumo mesmo em doses moderadas estava diretamente relacionado aos constantes acidentes no interior das minas.

  • 43  Boa Nova Junior, 1953, op. cit., p. 65.

30A questão da responsabilidade do álcool, usado em dose moderada, sôbre a mortalidade, não deixa dúvidas de que, pela ação sedativa e narcótica que exerce sôbre o sistema nervoso, mesmo em quotas não excessivas, o álcool afeta a produtividade do operário e faz crescer a cifra de êrros e acidentes, tanto mais, quanto mais delicadas a tarefa do operário, prejudicando assim, quantitativa e qualitativamente, o trabalho. 43     

  • 44  Ibid. p. 66.
  • 45  Nilo de Olveira. In: Silva, José da. “Lembranças...Quantas lembranças”. in: (Orgs) Silva, José da; (...)

31Além do combate ao consumo de bebidas alcoólicas, por este estar diretamente relacionado à produtividade operária, Francisco de Paula Boa Nova Junior, atacou uma série de outras práticas cotidianas masculinas que denominava de desregramentos. Este discurso traz imbuído a uma associação entre o corpo e a conduta moral. “Tais desregramentos se apresentam sob várias modalidades, dentre as quais citam-se os jogos de carta e as brigas de galo”.44 Estas práticas cotidianas eram perseguidas sobretudo porque retirava os homens do lar. As noitadas de jogatinas, pouco a pouco, transformavam “exímios trabalhadores” em “sombras” daquilo que deveriam ser os “verdadeiros operários”. Para o médico, a união do labor exaustivo no interior das minas com noitadas inteiras dedicadas a “farra” debilitariam de forma irreversível a capacidade física de cada um dos operários mineiros. Além de diminuir consideravelmente a produtividade, a participação nas rodas de jogos de azar necessitava do empenho de certa quantia de dinheiro para as apostas. O mineiro perdia os seus últimos tostões e, às vezes, todo o seu salário mensal deixando sua família desamparada financeiramente. Conforme afirma Nilo de Oliveira, “infelizmente, o nosso pessoal da Próspera era chegado em uma cachaça. Os pais saíam das minas, tomavam banho e iam para bodegas jogar o seu baralhinho e tomar uma ‘caninha’”.45 Nos jornais da cidade, eram freqüentes os artigos que condenavam os jogos de azar, pela “ameaça moral” que eles representavam às famílias:

  • 46  “Atenção mães e esposas! Atenção pais de familia”.  Tribuna Criciumense. Criciúma, 8 de julho de 1 (...)

Hoje as 20 hs, na Praça Nereu Ramos, ao ar livre, será o lugar do sensacional encontro Mampituba versus Comerciário e outros antros menores, em disputa do lindo troféu: Criciúma, o  principado catarinense do jôgo [sic]. Serão distribuídos às crianças, cartilhas para o aprendizado da jogatina, com explicações práticas pelos ases do pano verde, como se trapacea [sic] no pif-paf, bacará, campista, jôgo [sic] do bicho. Nos dias e noites seguintes, o torneio prosseguirá entre os “clubes” e “bodegas” das redondezas e interior do município. Grandes fogueiras serão armadas com a lei das contravenções penais. [...] Centenas de crianças acompanhadas de seus pais, viciados ou não, nos intervalos da disputa, receberam dos “catedráticos” da jogatina, aulas práticas, como arranjar dinheiro para “divertirem-se nesse humanitário e instrutivo passa-tempo (limpa bolsos, arruinadores de lares, pervertedor do caráter, etc.)46  

32Francisco de Paula Boa Nova Junior, em seu relatório, infere sobre outra prática cotidiana muito comum entre os homens da vila operária Próspera: as freqüentes idas às zonas de prostituição da cidade.

  • 47  Boa Nova Junior, 1953, op. cit., p. 66.

A vida boêmia a que certos operários de Criciúma se entregam, alguns mesmo legalmente casados, constitúe outro desregramento de vida que concorre preponderantemente para a existência de muitos casos de fadiga entre o operariado da região. Noitadas alegres em antros sórdidos povoados de infelizes mercadoras em precárias condições de saúde, sub-alimentadas  e portadoras das mais variadas enfermidades, entre as quais já foram constatados até casos de tuberculose aberta, afora as que comumente campeiam nos “bas fonds” de tôdas as cidades, são passadas em claro por muitos operários, num desperdício de dinheiro, ganho à custa de ináuditos esforços, de saúde, às vêzes bastante precária, e de energia quase sempre minguada.47

33Quando o médico se reporta a antros sórdidos, sugere que várias as “casas de tolerância” estavam em funcionamento na cidade neste período. Apesar de este estar apenas analisando os trabalhadores mineiros, isto não significa que este grupo fosse o único a freqüentar as zonas de meretrício. Possivelmente esta fosse uma prática muito comum entre os moradores da cidade, mineradores, mineiros, funcionários públicos, colonos, etc., mas por ser uma conduta considerada imoral, os grandes figurões da cidade não aparecem nas denúncias, ficando a análise restrita somente ao círculo dos proletários.

  • 48  Sobre a Maracangalha ver: Fraga, Adriana Vieira. Maracangalha: “vilarejo das desocupadas”: espaço (...)

34Entre os moradores do município, assim como entre os habitantes da vila operária Próspera, a zona de prostituição mais conhecida era a Maracangalha,48 uma espécie de remanescente de outra casa de tolerância, também muito representativa no “submundo” da prostituição da cidade, a Casa Verde. A Maracangalha era formada por um conjunto de casas construídas no Bairro Vinte, localizado nas proximidades do Morro Cechinel, com o único objetivo de serem alugadas para mulheres que vinham de outras regiões ou mesmo da própria cidade, que ali se estabeleciam para a prática da prostituição. Além dos quartos de aluguel, a Maracangalha ainda contava com um pequeno número de bares, onde os freqüentadores deixavam parte do seu dinheiro, quanto mais a prostituta fizesse o cliente gastar maior seria o lucro da casa.

  • 49  I. P.: Depoimento [31 de junho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pe (...)

35A Maracangalha era um lugar assiduamente freqüentado pelos mineiros da vila operária Próspera. Muitos após o término de seu turno de trabalho seguiam direto para a zona de prostituição, principalmente após o pagamento, como relata Dona I. P.: “tinha uma tal Maracangalha lá, que eles gastavam o dinheiro, botavam todo o dinheiro fora, jogavam, as mulheres tinham que ir atrás dos maridos”.49 Ciente desta prática comum entre os seus trabalhadores, e com a finalidade de regular o uso racional do orçamento doméstico a Carbonífera Próspera S.A. transferiu parte dos salários de seus mineiros para uma caderneta que era entregue às mulheres. Estas podiam gastar um percentagem da remuneração mensal de seu marido no mercado da mineradora, sendo descontado, posteriormente, na folha de pagamento.

36Diante destes considerados “desregramentos”, o sanitarista Francisco de Paula Boa Nova Junior propõe às carboníferas,

  • 50  Boa Nova Junior, 1953, op. cit., p. 66.

O amplo combate ao jogo, sob qualquer forma, e à prostituição desregrada seriam medidas a serem no caso adotadas em defesa de uma geração de operários já bastante viciada e esgotada no pleno verdor dos seus 25 ou 30 anos de existência, com remotas possibilidades de atingir pelo menos a uma longevidade de 40 anos [...]50  

  • 51  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pes (...)
  • 52  Companhia Siderúrgica Nacional – CSN.
  • 53  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pes (...)

37Mesmo com as incessantes tentativas de coibir os mineiros de freqüentar a Maracangalha esta foi uma prática que perdurou por muitos anos. Alguns trabalhadores até deixavam suas famílias para viver definitivamente naquele local. Segundo J.S. “tinha um cara lá da Próspera que ficou parando de vez ali, não vinha mais embora, largou a família e ficou ali, isso acontecia muito”.51 Por serem trabalhadores da maior empresa mineradora da cidade, subsidiaria de uma estatal52, os mineiros da vila operária Próspera eram bem recebidos nos botecos da região, e considerados os preferidos das mulheres que trabalhavam na Maracangalha. Com rendimentos superiores ao dos outros trabalhadores mineiros de Criciúma, os operários da Próspera gastavam boas quantias em dinheiro nestes locais que não deixaram de funcionar nos arredores da empresa apesar dos insistentes apelos do médico. Por esse motivo, relembra o Sr J.S., “teve uma época que saiu o décimo terceiro da Próspera, e as mulheres da zona colocaram uma faixa bem grande: Salve o Décimo Terceiro da Próspera”.53

38Com contornos bem definidos, entre o masculino e o feminino, a vila operária demonstra à sua forma, as faces de um mesmo processo de poder, em que homens e mulheres são submetidos a identidades de gênero que os encalçam em todos os momentos de sua vida cotidiana.  Assim as divisões sexuais dos espaços, da mesma forma que outros discursos circulantes, contribuem para a forja do arquétipo masculino e feminino construído no interior de um sistema de relações desiguais: o homem forte, urbano e aventureiro caberia o mundo das ruas, enquanto a mulher por ser considerada amorosa e dedicada à família caberia o mundo do doméstico e seus correlatos.

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Notes

1  Este artigo é parte modificada de minha dissertação de mestrado, intitulada Faces da Assistência Social do Setor Carbonífero Catarinense: Criciúma (1930-1960), orientada pela Profª. Drª. Silvia Maria de Favero Arend. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2009. Apoio: CAPES.

2  Pedro, Joana Maria. “Relações de Gênero na Pesquisa Histórica”. Revista Catarinense de História. nº 2. Florianópolis: Terceiro Milênio, 1994. p. 42.

3  Brito, Maria Noemi Castilhos. “Gênero e cidadania: referencias analíticos”. In: Revista de Estudos Feministas. N. 1. 2001. p. 293.

4  Okin, Susan Moller. “Gênero, o público e o privado”. Revista de Estudos Feministas. Ano 16. Vol. 02. Florianópolis: UFSC, 2008. p. 310.

5  Thompson, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 104-117.

6  Prins, Gwyn. “História Oral”. In: BURKE, Peter (Org.). Escrita da história:novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 192.

7  Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre. A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 37-40.

8  Ibid. p. 57.

9  Scott, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 20, nº 2, 1995. p. 86.

10  Varikas, Eleni. “Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo entre Tilly-Scott”. In: Cadernos Pagu. (3). 1994. p. 67.

11  Matos, Marlise. “Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as ciencias”.Revista de Estudos Feministas, vol. 16, n. 2. Florianópolis: UFSC, 2008. p. 336.

12  Nicholson, Linda. “Interpretando gênero”. Revista de Estudos Feministas, vol 8, n. 2. Florianópolis: UFSC, 2000. p. 11.

13  Idem.

14  Maluf, Marina; Mott, Maria Lúcia. “Recônditos do mundo femenino”. In: Sevcenko, Nicolau (Org). História da vida privada no Brasil: República: da Belle Époque à era do rádio. Volume 3. São Paulo: Companhia das letras, 1998. p. 373-375.

15  Perrot, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 181.

16  Ibid. p. 191.

17  Este armazém foi construído em parceria com o SESI fazia parte dos postos de abastecimento de gênero de primeira necessidade que o instituição filantrópica possuía espalhado pelas principais zonas industriais do Estado de Santa Catarina.

18  M. A. A.: Depoimento [08 de outubro de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

19  Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre, 1996, op. cit., p. 50-60.

20  Perrot, 1988, op. cit., p. 192.

21  Assim chamados os homens que ficavam espionavam as mulheres, pelas frestas ou “gretas” das casas.

22  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

23  Idem.

24  Assim chamado o tanque d’água.  

25  Como era conhecido o local onde foram instaladas as torneiras.

26  O. D.: Depoimento [01 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

27  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

28  Perrot, 1988, op. cit., p. 203.

29  M. A. A.: Depoimento [08 de outubro de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.  

30  Perrot, 1988, op. cit., p. 204.

31  Segalen, Martine. Sociologia da Família. Lisboa: Terramar, 1999.p. 285.

32  Prost, Antoine. Fronteiras e espacos do privado. In: (Orgs) Prost, Antoine; Vicent, Gérard. História da vida privada 5: Da Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 78.

33  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

34  Fáveri, Marlene de. “Guerra e papéis masculinos: reflexões na perspectiva de gênero”. In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História: Guerra e Paz. Londrina: ANPUH: 2005. p. 03-04.

35  Donzelot, Jacques. A polícia das famílias. 3ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 55-63.

36  Davi, Edmar Henrique Dairell. “Macho a qualquer custo. Investigação das relações de gênero através da análise de processos criminais. Uberlândia, 1975”. In: Caderno espaço feminino, vol. 13, n 16. Uberlândia: CDHIS, 2005. p.91.

37  Fernandes, Juarez. “Alcoolismo (ou etilismo, para os alcoólatras granfinos)”. Tribuna Criciumense. Criciúma, 14 de abril de 1960. p. 3.

38  Chalhoub, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Editora brasiliense, 1986. p. 114.

39  Certeau; Giard; Mayol; 1996, op. cit. p. 58.

40  C. F.: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

41  Boa Nova Junior, Francisco de Paula. “Problemas médicos –sociais da indústria carbonífera sul catarinense”. Boletim No 95. Rio de Janeiro: DNPM, 1953. p. 65.

42  Médico contratado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral para realizar um levantamento socioeconômico da região carvoeira.

43  Boa Nova Junior, 1953, op. cit., p. 65.

44  Ibid. p. 66.

45  Nilo de Olveira. In: Silva, José da. “Lembranças...Quantas lembranças”. in: (Orgs) Silva, José da; Patrício, José de Souza. Semente de luz em terra próspera: o bairro Próspera no tempo das freiras. Criciúma: Produção própria, 2001. p.77.    

46  “Atenção mães e esposas! Atenção pais de familia”.  Tribuna Criciumense. Criciúma, 8 de julho de 1957. p. 01.

47  Boa Nova Junior, 1953, op. cit., p. 66.

48  Sobre a Maracangalha ver: Fraga, Adriana Vieira. Maracangalha: “vilarejo das desocupadas”: espaço de Prostituição e boemia na região carbonífera catarinense (1955-1980). 2008. Dissertação Mestrado em História – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

49  I. P.: Depoimento [31 de junho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

50  Boa Nova Junior, 1953, op. cit., p. 66.

51  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

52  Companhia Siderúrgica Nacional – CSN.

53  J.S.: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Ismael Gonçalves Alves, « Divisão sexual dos espaços: práticas e sociabilidades femininas e masculinas nas vilas operárias do sul de Santa Catarina (Brasil 1930-1960) », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 27 octobre 2010, consulté le 04 janvier 2023. URL : http://journals.openedition.org/nuevomundo/60227 ; DOI : https://doi.org/10.4000/nuevomundo.60227

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Como era a vida dos operários?

Os operários eram submetidos a condições desumanas de trabalho. As fábricas geralmente eram quentes, úmidas, sujas e escuras. As jornadas de trabalho chegavam a 14 ou 16 horas diárias, com pequenas pausas para refeições precárias.

Como era a vida nas vilas operárias do início da Revolução Industrial?

Na verdade, as condições de vida dos trabalhadores eram precárias: eles viviam em bairros afastados das regiões centrais das cidades, suas casas eram insalubres, construídas em ruas escuras e sem pavimentação, eram mal ventiladas, não tinham água e apresentavam péssimas condições sanitárias.

Como funcionavam as vilas operarias?

As casas operárias foram construídas uma ao lado da outra; eram casas iguais, geminadas, ocupando o quarteirão inteiro e aproveitando os terrenos da fábrica. Prédios de mais de dois andares não existiam na vila.

Onde ficavam E como era a vida nas vilas operárias?

As vilas operárias eram precárias, sendo muitas vezes construídas de maneira improvisada, com materiais inadequados, sem sistemas de esgoto, água encanada ou obedecer normas de segurança.